Rosemery Casoli luta contra o machismo do Judiciário, que nega direitos fundamentais a ela e muitas outras mulheres
Violência doméstica, violência social, violência judicial. Elos de uma corrente que aprisiona incontáveis mulheres no Espírito Santo, no Brasil e no mundo, em um círculo vicioso de agressão, impunidade, sensação de impotência, pena, medo…e mais agressões, mais impunidade…
Depois de duas décadas sobrevivendo à violência cotidiana proferida pelo então marido contra ela e os filhos, a professora, mestre em Artes, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e membro do Projeto de Extensão Fordan, Rosemery Casoli, decidiu dar um basta. Com o filho caçula já maior de idade, relata que entendeu que a família possuía condições suficientes para encarar o agressor e exigir o que a lei lhes garante. Nesse processo, foi preciso encarar primeiramente o seu próprio machismo.
“Eu cheguei num entendimento que precisava deixar de ser machista para deixar de ser vítima da violência doméstica. Enquanto eu era machista, a violência que o sujeito praticava contra mim era natural. Porque a religião, a cultura e a família me ensinaram isso: ‘ruim com ele, pior sem ele’ – quando eu me casei, esse ditado fazia parte do meu pensamento. Eu reparava os olhares dos vizinhos, que sabiam de tudo: eram de pena. Isso nunca me ajudou. E eu comecei a querer sair do lugar de vítima”, conta.
Foi há oito anos que ela acionou a Justiça pela primeira vez, em outubro de 2013, na 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar de Vitória, requerendo medida protetiva contra o marido. A princípio, o pedido foi negado pela juíza, Clesia dos Santos Barros. Acompanhada do advogado, Rosemery questionou a sentença, mas nada mudou. Somente numa terceira tentativa, acompanhada da filha, ela conseguiu convencer a magistrada de que era ela a vítima e não o marido. A medida lhe valeu por cinco anos, mas nos últimos três, à base de um desgaste que considera inacreditável.
O problema exposto por ela começou quando uma nova juíza, Brunella Faustini Baglioli, assumiu a Vara da Mulher da capital e retomou o comportamento inicial de sua antecessora, de questionar a legitimidade do pedido de proteção. “Passei a ter que provar todo mês a necessidade de medida protetiva. Foram muitos boletins de ocorrência desde então. Assim que consegui o divórcio, o crime prescreveu e ela retirou a medida protetiva de vez. Eu estava dando aula quando o advogado me avisou, em 2018”, relata a pesquisadora.
Definida como “um pedido de socorro para mim e também para os meus filhos”, Rosemery abre a carta afirmando ter “muito orgulho de ser mãe deles e não gostaria de perdê-los ou que eles viessem a me perder”.
Tentativa de estrangulamento
A cena é dantesca: o ex-marido e seus funcionários derrubando as paredes que separam a casa de Rosemery da parte do imóvel sob posse do agressor, enquanto o irmão e advogado ofende a ela e a filha, Bruna, que desce até o térreo, em socorro à mãe, e grava todas as ofensas, palavras chulas, ameaças e agressões, incluindo a tentativa de estrangulamento proferida por José a Rosemery e a ameaça de morte de Geraldo contra a própria filha.
“Toda essa filmagem que você está fazendo não serve nem para limpar a sua bunda”, transcreve Rosemery na carta, uma das ofensas de José Cassimiro.
Em suas redes sociais, o Fordan compartilhou uma imagem do fatídico dia, trechos da justificativa da juíza da Vara da Mulher de Vitória para mais uma vez negar a medida protetiva à família de Rosemery, e pergunta: “a mulher não denuncia, ou as instituições de proteção à mulher não fazem o acolhimento adequado da denúncia?”
“Vamos apresentar, no boletim do projeto deste mês de outubro, as limitações da Justiça, principalmente da Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar, que não tem emitido as medidas protetivas a contento, nem tem feito a tipificação, como violência doméstica dentro da Lei Maria da Penha, da questão patrimonial e da violência psicológica e contra população LGBT”, antecipa a coordenadora.
Decisão é ‘nula de pleno direito’
Na última quarta-feira (28), o Fordan encaminhou um terceiro dossiê sobre o caso de Rosemery, solicitando “averiguação de seguidas negativas de medida protetiva à vítima de violência doméstica”, desta vez ao Ministério Público Federal (MPF), ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além dos estaduais, Ministério Público (MPES), Defensoria Pública (DPES), Comissão de Direitos Humanos do Espírito Santo, Conselho dos Direitos Humanos (CEDH) e Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher do Estado (Cedimes) – todos já cientes do caso e sem nenhuma medida efetiva de proteção.
‘Sou dona da minha vida’
Se nas instâncias judiciais, o Projeto Fordan tem dado suporte à luta de Rosemery, em sua produção acadêmica, a pesquisadora trabalha para refletir sua evolução como mulher e feminista. No projeto de mestrado defendido ano passado junto ao Departamento de Artes da Ufes – “Corpo transgressor feminino: a arte rompendo estigmas num diálogo de enfrentamento da violência doméstica praticada contra a mulher” – um poema anuncia a transformação que conduziu a escrita da dissertação, especialmente uma de suas estrofes:
“Um sujeito de direitos.
Pois agora sei que sou
Isso nunca mais vai mudar
Sou dona da minha vida”
E assim como sua pesquisa de mestrado, esta matéria também é dedicada “a mulheres vítimas de violência doméstica, com o desejo que consigam romper com as amarras que as prendem ao agressor”.
Sem respostas
Acionado por Século Diário para comentar o caso e as sentenças questionadas, o Tribunal de Justiça do Estado (TJES) não se posicionou, até o fechamento desta matéria.