Alessandra Souza é uma das que teve Medida Protetiva retirada irregularmente, segundo denúncia do Fordan-Ufes
O braço da Justiça que deveria proteger as mulheres em situação de violência doméstica na Capital capixaba tem atuado em sentido oposto e intensificado a vulnerabilidade das vítimas, diante de seus algozes. O grave alerta é do Programa de Extensão Fordan, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que, a partir da situação vivenciada neste momento pela massoterapeuta Alessandra Souza Silva, encaminhou denúncia dos recorrentes caso de revitimização de mulheres agredidas para os núcleos especializados do Ministério e da Defensoria Pública Estadual (MPES e DPES), além do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher no Estado (Cedimes) e da União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro-ES).
“O procedimento adotado pela 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra Mulher de Vitória para a revogação de Medidas Protetivas de Urgência é irregular e tem colocado em risco várias mulheres vítimas de violência e suas famílias”, afirma o documento, que é assinado pelos advogados Cristiana Ribeiro da Silva e Arthur Bastos Rodrigues e pela coordenadora do Fordan, professora Rosely Silva Pires.
“É preciso readequar, urgentemente, a atuação do judiciário especializado, enquanto política pública de proteção das mulheres vítimas de violência, invertendo a lógica da revitimização e da violência institucional, para uma lógica protetiva, de acordo com a Constituição, com a Lei Maria da Penha e com os tribunais superiores”, reivindicam os autores.
Arthur Bastos Rodrigues explica que a análise do Fordan se baseia principalmente nos diversos casos que o programa de extensão acompanha, a partir do amplo trabalho de acolhimento de mulheres negras e pobres da Grande São Pedro, que envolve, além do jurídico, atendimentos em saúde e atividades de arte e cultura para as acolhidas e seus filhos. “Os casos que a gente acompanha são um recorte da realidade da Grande Vitória. O que acontece com as mulheres da periferia de São Pedro pode ser a realidade também de outras periferias”, contextualiza, apontando para estudo do Fordan que mostra como as mulheres negras de periferia são as principais vítimas de feminicídio no Espírito Santo.
“As varas especializadas têm muito um ímpeto de inovar muito, mas é preciso que elas se adequem à jurisprudência dos tribunais superiores e se tornem ferramentas de política pública de proteção às mulheres, levando em conta o caráter protetivo, de precaução, de razoabilidade, procurando inverter a lógica de revitimização e violência institucional”, reforça.
Sobre o caso de Alessandra, o documento aponta a “situação real de ameaça e de agravamento das violências, com necessidade urgente de concessão de Medida Protetiva de Urgência [MPU]”. Junto à denúncia, a equipe também registrou um Boletim de Ocorrência online dos últimos atos de agressão do ex-marido de Alessandra, que invadiu a sua casa por mais de uma vez, inquirindo com quem ela estava se relacionando no momento, bem como solicitou a MPU, visto que a anterior foi revogada irregularmente pela juíza responsável pela 1ª Vara Especializada, Brunella Faustini Baglioli.
Os protocolos foram feitos no dia 13 de julho, mas somente seis dias depois ela recebeu o mandado de intimação para a “audiência de justificação”, agendada para a próxima segunda-feira (24). Ou seja, segundo o Fordan, se a magistrada conceder imediatamente a MPU para Alessandra, durante a audiência, estará extrapolando em muito o prazo estabelecido pela atualização da Lei Maria da Penha, em abril último, que é de no máximo 48 horas.
“A denúncia que fizemos junto com a Defensoria Pública e o Ministério Público provavelmente foi um fato que favoreceu uma rapidez na resposta, porque normalmente, as audiências costumam demorar bem mais do que isso. Mas mesmo assim, está mais demorado do que a lei determina. E o mais grave é que estamos tratando de uma situação urgente, de grande risco para a vítima”, analisa o advogado.
Vinte anos de violências
Ainda que a justiça esteja sendo lenta, Alessandra está feliz com o andamento atual das coisas. Por que ao longo de mais de 20 anos de casamento com o agressor, ela passou por sucessivas situações de violência por parte da Polícia e da Justiça. “Estou me sentindo bem, porque parece que agora eu vou ser ouvida de verdade. A polícia nunca me dava atenção”.
O primeiro episódio ocorreu em 2001. “Eu fiz boletim de ocorrência, fui para a Casa do Cidadão, mas eles deram arquivamento no caso, até hoje não deu nada”. A massoterapeuta conta que o ex-marido chegou a ser preso uma vez, enquadrado na Lei Maria da Penha, mas por menos de três meses. “Ele saiu dizendo que ‘a Lei Maria da Penha não existe para mim, é só pagar a fiança, a cesta básica’. E ficava debochando de mim, dizia que a cadeia foi boa, porque ele comia de graça, ficava jogando dominó”.
Durante vinte anos, ela viveu sob o julgo da violência do então companheiro. Violência física, sexual, psicológica, emocional. As seguidas gestações, conta, também são resultado da dominação. “Filho é sempre bênção de Deus, e eu agradeço pelas filhas que eu tenho. Mas muita gente me julga, pergunta por que eu tive cinco filhas com um homem que me agredia. É que eu não posso tomar anticoncepcional, indicação do médico, e ele [o ex-marido] não me deixava ter nem o resguardo de um parto e já me obrigada a fazer sexo de novo. E era direto, ele me ameaçava, me xingava, se eu dizia que não. Era pior quando chegava bêbado. Eu fui muito estuprada por ele. Tanto que não consigo nem olhar para a casa onde vivi com ele. Prefiro pagar aluguel em outra casa do que entrar lá de novo. Tenho muita lembrança ruim de lá, fui muito machucada lá dentro”.
Por muitas vezes, Alessandra denunciou as agressões, mas nunca teve o acolhimento devido pelas autoridades policiais. “Eu era piada na delegacia. Eu denunciava, eles me chamavam, daí ele [o ex-marido] chorava, ficava como vítima. Uma vez a delegada falou que eu era doida e que tinha que procurar uma psicóloga. Outra vez, o delegado colocou duas algemas em cima da mesa e disse que se a gente não entrasse num acordo, ia pegar minha filha pra ele. Eu tive que voltar andando pra casa com ele”, relata.
Somente em 2021, ela conseguiu uma Medida Protetiva – processo nº 0006096-28.2021.8.08.0024 -, pouco depois de sair de casa para se livrar do agressor, decisão que tomou após participar de rodas de conversa e um evento de conscientização sobre violência doméstica realizados pelo Fordan em São Pedro. Desde que o documento foi expedido, o ex-marido parou de persegui-la. Porém, no último dia três de julho, Alessandra foi comunicada que a MPU havia sido revogada em outubro passado. O comunicado lhe chegou pelas mãos da filha mais velha, que o recebeu do oficial de Justiça. Um dia antes, o ex-marido, que ela acredita ter sido avisado antes da decisão, fez a primeira ação de agressão desde que a MPU havia sido concedida, em 2021.
A forma como a MPU de Alessandra foi revogada é descrita na denúncia do Fordan como ilustrativa da atuação irregular da Vara comandada pela juíza Brunella Faustini Baglioli. Os advogados colhem trechos da sentença, mostrando incoerência com a Lei Maria da Penha e com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos semelhantes.
“As medidas devem persistir enquanto perdurar a situação de risco da mulher, cabendo a esta o ônus de comunicar o Juízo quanto a eventuais alterações na situação fática por ela vivenciada” é uma das citações da sentença, com base na legislação vigente. Porém, em outro momento, a própria magistrada afirma que, “no presente caso, os requisitos de existência e validade da presente medida desapareceram, uma vez que há mais de um ano não são fornecidas novas informações”.
Os advogados asseveram que a “incoerência legal é gritante”. “A única maneira possível de se obter informações para determinar a real ‘situação de risco da mulher’ é através de declarações e da realização de oitivas de depoimentos, da requerente e de testemunhas. Por um lado, de fato, a magistrada não pode ‘falar em persistência presumida da situação de risco’ (6º §), contudo, menos ainda, se pode tratar de encerramento presumido (‘impersistência’) da situação de risco de violência. É obrigatório para este juízo denegatório, ao menos, que haja tentativas de convocação da requerente para que esta tenha a oportunidade de ser ouvida antes da decisão que possa revogar ou manter a medida protetiva de urgência”, argumentam na denúncia enviada ao MPES e DPES.
“Se houvesse a regular convocação da requerente, antes do juízo denegatório ‘de ofício’, saberia o juízo, claramente, a real situação de violência sofrida pela vítima e a necessidade urgente da manutenção de medidas protetivas de distanciamento”, sublinham. “O fato de não haver novas informações nos autos se deve unicamente a dois motivos: um, a situação de risco de violência permanece e, dois, não foram requeridas novas informações pelo juízo”, reforçam.
“Não se pode aceitar nem as revogações automáticas, sem a convocação das mulheres para manifestação prévia a esta revogação, nem a fixação de prazos fixos em abstrato ou, mesmo, a exigência formal de demonstração de novos fatos como condicionante para a manutenção dessas medidas protetivas de urgência”, afirmam os juristas do Fordan.
“A prática recorrente da Vara Especializada é desproporcional, contrária à principiologia protetiva e de precaução da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e diverge da maior parte dos tribunais pátrios, em destaque, de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”, contextualizam, citando um caso ocorrido este ano em São Paulo (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1775341 – SP).
Na ocasião, relata o documento, “o ministro relator Sebastião Reis Júnior citou um parecer jurídico do Consórcio Lei Maria da Penha, segundo o qual a revogação de medidas protetivas de urgência exige a prévia oitiva da vítima, para que se avalie se efetivamente não há mais risco à sua integridade física, moral, psicológica, sexual e patrimonial” e também citou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ), que defende a necessidade de restringir a liberdade do agressor “enquanto existir risco ao direito da mulher de viver sem violência”, conforme consta do trecho “o direito de alguém de não sofrer violência não é menos valioso do que o direito de alguém de ter liberdade de contato ou aproximação”, extraído do Protocolo do CNJ.
Atuação em rede
A Defensoria Pública acompanha o caso de Alessandra e deve designar uma defensora para acompanhá-la na audiência de segunda-feira, bem como o Fordan também continuará o acompanhamento jurídico.
A promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid/MPES), Cristiane Esteves Soares, já encaminhou Notícia de Fato sobre o caso para a Promotoria de Justiça da Defesa da Mulher de Vitória, vinculada à 1ª Vara.
O Fordan também pede à DPES e MPES, que encaminhem a denúncia à Corregedoria Geral de Justiça do Espírito Santo (CGJ).