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A água, a horta e a ‘burrocracia’

Foto: Vitor Taveira
 
 
Já se vão mais de dois meses desde que a Horta Comunitária Quintal na Cidade, em Vitória, teve sua fonte de água cortada pela Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan). Pese pedidos enviados pelos hortelões para a empresa e para a prefeitura de Vitória, não houve solução. Os moradores então decidiram solicitar uma ligação particular, dividindo entre os membros do grupo os custos. 
 
Havia uma fonte de água pública, antiga, que era usada para a rega. Por conta de uma denúncia anônima, a Cesan foi lá e cortou o fornecimento. O pedido de religação do ponto foi negado, pois a horta não é – e nem pretende ser, ao menos por enquanto – uma entidade legalizada, com CNPJ e etc. “A burocracia é insensível”, me disse certa vez um professor. Nunca esqueci essa frase. 
 
Talvez não seja maldade da Cesan, vamos acreditar. Pode ser mera burocracia, mas sabemos que esta é facilmente resolvida se houver um mínimo de vontade política.
 
 
Vou citar um exemplo: em Curitiba, um grupo de pessoas começou a organizar uma horta na terra que havia numa calçada, a Horta Comunitária de Calçada Cristo Rei, em referência ao nome do bairro. Acontece que a legislação curitibana, pensada para o paisagismo, determinava quais espécies poderiam estar nas calçadas. Obviamente não estavam previstas plantas que servem de alimento.
 
Alguém denunciou e- veja! – pese o belo projeto, os hortelões calçadistas paranaenses eram “fora da lei”. Certamente, quando fizeram essa norma, jamais imaginariam que alguém pudesse querer plantar na calçada. Mas quiseram e o fizeram. E vinha tendo um resultado muito legal. O tempo passa, as mentes e práticas mudam e as leis precisam se adaptar. 
 
Na horta Cristo Rei houve mobilizações, mutirões, campanha de apoio, denúncia nos meios de comunicação e a norma se mostrou insustentável. Foi feito um ajuste na lei e tá beleza. Segue o baile. Segue o plantio. 
 
Muito parecido o que  aconteceu com a horta Quintal na Cidade.
 
“Ah, não tem água de graça”. 
 
Mas a horta do centro virou exemplo e inspiração: saiu várias vezes na imprensa local e até na nacional. Recebe inúmeras visitas de escolas, universidades e comunidade, realiza oficinas e eventos culturais e ambientais, contribui para fortalecer os vínculos comunitários, para combater males modernos como estresse e depressão, para produzir alimento sem veneno, para a economia das famílias. Tem fim social. “Ah, mas tem que ter CNPJ”. Burrocracia. 
 
Ninguém pensou que um pessoal teria a ideia de criar uma horta num terreno que estava abadonadinho pela prefeitura. Ninguém pensou que quando houver hortas e mais hortas na cidade será preciso água para garantir todos esses benefícios gerados por elas. Mas não a água domicílio. Não a água privada. E sim a água bem comum.
 
Muitas vezes a cidadania está à frente do poder público, construindo e desconstruindo a cidade, criando melhores relações de convivência entre os seres humanos e deles com a natureza.
 
A provocação a que queria chegar depois de tantas voltas é: não seria hora de começar a pensar políticas públicas para incentivo e manutenção da agricultura urbana? A mesma Curitiba dá o exemplo: começou a discutir recentemente sua Lei de Agricultura Urbana, para que se possa pensar desde já como destravar o futuro que se avizinha, num país já com 80% de população urbana sendo envenenada diariamente pelo agronegócio. A solução é agroecologia no campo e na cidade.
 
Algo muito interessante é que o processo de construção da lei em Curitiba conta com participação e convergência de pessoas e políticos de distintas visões, partidos e ideologias. Incrivelmente, a produção orgânica, de alimentos sem veneno, é uma pauta capaz de unir campo e cidade, coxinhas e mortadelas.
 
Comer bem, que mal tem?
 
Libera a água Cesan, deixa o povo trabalhar!

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