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A carne, a floresta e os povos da floresta

Findando-se a Quaresma, período religioso com habituais jejuns de carne vermelha, é válida uma reflexão sobre os impactos socioambientais do consumo excessivo de proteína bovina, bem como sobre a evolução do simbolismo da carne ao longo da história e em diferentes culturas.

Religião

Vem da Antiguidade o consumo de carne como símbolo de elevado status social e, o seu jejum, sinal de abnegação e penitência, sendo recomendado, ainda hoje pela Igreja Católica, como forma de reverenciar o sacrifício feito por Jesus Cristo para salvar a humanidade.

Seguindo a doutrina sediada em Roma – e quem tem no Brasil sua maior nação –, há quem se abstenha de carne vermelha apenas na Sexta-feira Santa, outros, durante toda a Quaresma ou todas as sextas-feiras nesse período de 40 dias entre o Carnaval e a Páscoa. Há quem troque também a carne vermelha por outro alimento, cuja ausência se traduz e, semelhante abnegação espiritual, mas a regra geral é a retirada da carne bovina do cardápio.

Cultura

Bois e vacas, por sua vez, são seres sagrados nos quatro cantos do mundo. Sim, a leitura é possível ao se observar as especificidades culturais locais. A Índia é o país que melhor explicita essa divindade da subfamília Bovinae, onde as vacas são representadas em quadro e estátuas sagradas e, nas ruas, recebem tratamentos especiais, havendo uma das maiores concentrações de vegetarianos do planeta.

O Oriente como um todo, na verdade, tem a tradição vegetariana, alguns usando em maior ou menor escala, o leite e seus derivados.

No Ocidente, ao contrário, o sagrado é profanado pela cultura carnista predominante, fazendo com que todos os fins-de-semanas e datas festivas sejam pretextos para mais um pequeno “carnavale” fora de época – “adeus à carne”, em latim, período de três a quatro dias, que antecede a quarta-feira de cinzas, onde é incentivado o elevado consumo de carne, antes do jejum da Quaresma – à mesa ou à churrasqueira.

O Brasil já possui uma população bovina (218,23 milhões em 2016) maior que a humana (208.816.558 habitantes em 2018), ocorrendo disparidades ainda maiores em alguns municípios capixabas, como o pequeno Divino de São Lourenço, na Região do Caparaó, sudoeste do Estado, com seus menos de cinco mil habitantes, e onde, segundo o Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), o rebanho é de quase 10 mil “cabeças” de boi, ocupando 9 mil hectares.

Saúde

O Brasil é o maior exportador de carne do mundo, atividade que gerou uma receita de R$ 5,3 bilhões em 2016, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O setor cresce continuamente, puxado pelo aumento do consumo de carne vermelha em todo o mundo, inclusive os países do Oriente, com tradição de dietas menos carnistas e mais vegetarianas.

O aumento do consumo traz, a reboque, maior incidência de câncer colorretal e hipertensão, citando apenas duas das doenças – epidemias –mais diretamente relacionadas ao consumo excessivo de proteína e gordura animal.

“É preciso evitar o consumo excessivo de carnes vermelhas, alimentos defumados e álcool, priorizando a ingestão de frutas e vegetais. O cigarro e a obesidade também são agravantes” elenca o oncologista clínico Felipe Ades, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e do Centro Paulista de Oncologia, ao citar os principais fatores de risco para câncer colorretal, em comunicação feita pela instituição nos últimos dias da Quaresma.

A doença já é a quarta causa de morte por câncer no mundo e está cada vez mais presente no Brasil. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), só em 2018 serão mais de 30 mil novos casos. E a maior incidência está na região Sudeste, onde a doença já é o segundo câncer mais comum entre mulheres e o terceiro entre homens. “A alimentação é um dos principais fatores de risco. Por isso, a incidência pode variar de acordo com os hábitos de cada região”, afirma o especialista.

Poder

A maior presença de partes cozidas de animais nos pratos de ricos e pobres, porém, não retirou da carne vermelha o simbolismo de poder. Mesmo que à mesa esses status esteja se diluindo, na realidade fundiária das zonas rurais dos municípios capixabas e brasileiros, ela ainda vigora, cruelmente.

“Os grandes proprietários de terra justificam o latifúndio com a pecuária extensiva”, afirma o camponês Dione Albani, da coordenação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Montanha, no noroeste do Espírito Santo.

Algumas centenas de hectares de terra, com esparsas “cabeças de gado” espalhadas sob o sol escaldante e sobre o solo duro – um bovino para cada hectare em média – e uma meia dúzia de trabalhadores, quando muito.

Com esse formato, o latifúndio permanece uma triste realidade socioambiental no Estado, principalmente no norte e noroeste, além de boa parte do sul também.

O interesse primordial em assegurar a posse da terra faz com que os médios e grandes fazendeiros, muitos vivendo nas cidades, não tenham interesse em tornar as propriedades realmente produtivas. Resultado: grandes áreas com elevado índice de degradação – sem matas ciliares e nascentes, solo compactado e estéril – e elevados Índices de pobreza nas cidades que tem na pecuária o carro chefe da agricultura, devido à baixa empregabilidade e rentabilidade da atividade.

Degradação humana e ambiental

Essas pastagens degradas são alvo certeiro para os aliciadores da silvicultura. No norte e noroeste do Estado, o arrendamento de antigas pastagens por empresas interessadas em plantios de eucalipto se expande. “Mesmo tendo o embargo da Justiça [a Justiça estadual proíbe novos plantios de eucalipto em vários municípios da região], elas continuam aliciando e arrendando terras”, relata Dione.

Depois da monocultura do pasto por quarenta anos, conta o camponês, os latifundiários têm aderido ao deserto verde para manter a posse da terra.

Um olhar histórico sobre a ocupação do solo capixaba mostra os sucessivos ciclos econômicos, cada um contribuindo, à sua maneira, para a atual crise hídrica.

No final do século XIX, início do século XX, a floresta era derrubada para o plantio de café e, em seguida, a pastagem. Com as sucessivas crises do café e o crescimento de uma indústria madeireira, esse ciclo começou a ser abreviado, atingindo seu ápice na década de 1960, com o Programa de Erradicação do Café. A partir daí, os cafezais abandonados foram transformados em pastagens, nas regiões mais planas, e, nos relevos mais ondulados, voltaram a ser ocupados por floresta.

Nessa mesma época, um ciclo específico ocorria aos arredores da Aracruz Celulose (atual Fibria), o ciclo trágico que se instalava era a substituição da floresta por eucaliptais. Hoje, as pastagens exauridas tornam plantações de eucalipto.

Atualmente, dos 4,6 milhões de hectares que compõem o território capixaba, pouco mais da metade (2,26 milhões ha) são considerados terras agricultáveis, segundo dados de 2015 do Incaper. Nessas áreas, que excluem manchas urbanas, afloramentos rochosos, corpos hídricos e florestas nativas, mais da metade é ocupada com pastagens (1,32 milhões ha).

O café vem em segundo lugar em extensão, ocupando 21% ou cerca de 500 mil ha. E o eucalipto já é o terceiro maior produto, em área ocupada, cobrindo 12% (280 mil ha) das terras agricultáveis capixabas.

A área destinada à produção de alimentos, especialmente feijão, mandioca e milho, representa apenas 1,49% do território agricultável capixaba, e tem se reduzido gradativamente, colocando em risco nossa segurança alimentar e fragilizando a agricultura familiar.

Engrenagem

O fim da Quaresma, portanto, é uma boa oportunidade de questionar o verdadeiro lugar da carne, seja na mesa, nas vísceras e na terra. Maior consumo de carne, historicamente, tem sido atrelado à manutenção do poder sobre as minorias e de uma das engrenagens de um sistema econômico que reduz a área disponível para produção de alimento saudável e abre espaço para commodities como o café e a produção de celulose e papel, à custa do sangue e sofrimento dos povos da floresta – quilombolas e indígenas – e camponeses, expulsos para as periferias das cidades. 

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