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A cura espiritual guarani

Fotos: Rogério Medeiros
 
O pajé Laurindo Tupã tem 67 anos e vive na Aldeia Brilho do Sol, em São Bernardo do Campo (23 km de São Paulo), uma área a que se chega apenas por balsa, cruzando as águas da colossal represa Billings, um dos mais importantes reservatórios hídricos da região metropolitana de São Paulo. Há 42 anos, devota-se a curas espirituais em aldeias guarani e é o mais requisitado pajé do Brasil, qualificação que, embora honrosa, impõe-lhe a missão de confrontar um severo déficit de pajés guarani. Missão dura: o pajé percorre nada menos que o país inteiro realizando sessões de cura espiritual e, assim, preservando a cultura de seu povo.
 
No dia 27 de maio, Laurindo desembarcou em Aracruz, norte do Estado. Até a última quarta-feira (31), promoveu 20 sessões de cura espiritual nas aldeias Piraquê-Açu e Boa Esperança, em que tratou 200 pessoas, a maioria jovens e mulheres. Não encerrava o dia sem antes discursar em defesa da vida indígena; no Espírito Santo, celebrou a memória de Tatantin Rua Retée, a xamã que quatro décadas atrás achou ter encontrado a Terra Sem Males em Santa Cruz, Aracruz, mas reconheceu, tempos depois, estar enganada.
 
A tradição guarani oferece tratamento espiritual para males físicos. Explicando tosca e rasteiramente: o pajé trabalha as energias corporais do enfermo com o auxílio de um cachimbo de madeira com ervas medicinais, que traga profundamente para em seguida devolver uma fumaça grossa com a qual envolve a mulher ou homem de torso nu sentado a sua frente.  A fumaça é presença inexorável: é o que afugenta os maus espíritos. Depois, o pajé procede um apalpamento dos pontos energéticos do corpo. 
 
Esse ritual intenso e poderoso é realizado no Opu (templo religioso), uma casinha penumbrosa com telhado duas águas forrado com folhas de palmeira, chão de terra batida e paredes de estuque. O acesso se dá apenas por uma porta; uma outra, direcionada para o nascer do sol, permanece fechada junto com a janela ao lado para evitar a entrada de maus espíritos. 
 
A um canto, mulheres cuidam das cepas de madeira que queimam lentamente. Trata-se de um dos principais elementos da sessão: produzem o fogo que alimenta as ervas do cachimbo do pajé. Noutro canto, um grupo em pé executa cânticos guarani com rabeca, violão, tambores, maracás e bastões de bambu batidos contra o chão por mulheres, que, dançando, marcam o compasso curto da música. 
 
Espalhados por todo o espaço, homens e mulheres em busca de cura esperam a vez sentados, imersos nesse cenário sensorial de fumaça, calor e música.
 
Uma banqueta repousada de frente para a porta fechada do Opu é o centro gravitacional do local. Tronco nu, uma velha guarani dirige-se tropegamente em direção à banqueta. Mesmo à pouca luz, é possível notar o inchaço severo que domina-lhe um terço da canela, logo abaixo do joelho. Com dificuldade, a velha guarani acomoda-se nele, voltada para a porta cerrada. Transmite calma. 
 
O pajé se aproxima, detém-se à sua frente por alguns segundos e começa a rodea-la, tragando profundamente o cachimbo e lançando-lhe grossas e sucessivas baforadas sobre a cabeça. Dedica-se um bom tempo a esse ritual preparatório para o corpo receber as energias. Cachimbo na boca, tragando as ervas e liberando fumaça, cinge toda a fronte da velha índia numa nuvem suave que, no entanto, demora a dissipar-se.
 

Essa prática medicinal guarani inicia o procedimento preparatório para cura espiritual sempre pela cabeça, o centro sensorial e cognitivo humano, derramando fumaça sobre os sete orifícios, as sete portas da percepção humana. O pajé só empreende os toques corporais, a exploração dos pontos energéticos do corpo, após despejar robustos blocos de fumaça medicinal sobre a cabeça do enfermo. 

 
O produto da combustão das ervas do cachimbo conduz o espírito para a cura. É o primeiro campo de exploração. O segundo campo são os toques corporais nos pontos de energia, que irão, digamos, desatar os nós e franquear os canais do corpo para a cura espiritual. Um terceiro procedimento não guarda lógica: às vezes o pajé lança baforadas na porta fechada. É que, na condição de curador espiritual, ele identifica a presença de espíritos maus que querem impedir o processo de cura e ameaçam entrar pelo acesso voltado para o nascer do sol. 
 
O parâmetro, aqui, não é apenas o fisiológico, as manifestações mais imediatas de perturbações (dores ou doenças). Do biológico ao espiritual, o pajé desbrava toda a composição humana e busca restabelecer o equilíbrio por um ou outro motivo desestabilizado.
 
O pajé, no entanto, reconhece as limitações da cura espiritual, efeito de transformações específicas no modo de vida indígena. Este foi um dos temas do discurso com que encerrou o primeiro dia de sessões de cura. 
 
Laurindo tomou a própria experiência guarani como exemplo, lembrando que, hoje, praticamente não há aldeias que não sejam vizinhas de grandes fazendas ou de perímetros urbanos, uma experiência que, como se sabe, reconfigurou marcantemente a cultura indígena. Incluindo a produção de doenças.
 
O pajé reportou que, até pouco tempo atrás, curava os índios de doenças produzidas pela vida na floresta – uma picada de cobra, uma queda na mata, um arranhão. Perturbações típicas do habitat indígena. O contato com o homem branco contaminou a nosologia indígena e produziu enfermidades para as quais a cura espiritual guarani é incontornavelmente ineficaz. 
 
A solução, aqui, disse o pajé sem titubeios, é mandar o enfermo para o hospital – coisa que ele mesmo faz.
 
No Opu, o pajé e a índia estão imersos em fumaça, absortos naquele ritual de cura. A música preenche o ambiente; a marcação certeira dos bastões de bambu batidos contra o chão ressoa pelo ar. A rabeca e o violão conferem um contraponto melódico ao acompanhamento percussivo dos tambores, maracás e bambus. As mulheres continuam dançando e cantando.
 

Após envolver a cabeça morena da velha índia, o pajé inicia o tratamento corporal, pressionando pontos específicos do torno da mulher onde se concentram as energias corporais. Então, se agachou em frente à índia, esticou a perna inchada e procedeu o ato mais impressionante daquele primeiro dia ao aproximar o rosto, escancarar os dentes e abocanhar com vigor o membro enfermo. 

 
Preservou-se naquela posição por alguns minutos, a boca afixada na perna inchada, o pescoço imóvel. Notava-se, contudo, um pequeno movimento da garganta do pajé, como se ele operasse a drenagem do membro. 
 
Nenhum esgar desestabilizou a fronte serena da velha índia. Quando o pajé se reergueu, o inchaço cedera e, a perna, readquirido proporções aceitáveis. Em seguida, o pajé levou a mão à boca, um gesto mais impressionante, que se repetiu na maioria dos procedimentos. Com os dedos em forma de pinça, ele retira da língua o produto da cura: um minúsculo material arredondado na forma e avermelhado na cor. 
 
Não há diagnóstico prévio. O pajé vê a doença. Quando atinge o enfermo com a fumaça e os toques corporais, a sensibilidade indígena aflora e se manifesta na visão da moléstia que acomete a pessoa sentada na banqueta. 
 
Este é um ponto interessante. Como ele trata de qualquer pessoa que entre no Opu, o que inclui o homem branco, as respostas que obtém, as formas pelas quais sua sensibilidade terapêutica se manifesta, são divergentes. E a linha fronteiriça é costumeiramente cultural: quando trata o índio, as respostas são imediatas; quando o enfermo é o não-índio, não raro demoram, exigindo mais sessões.
 
A postura impassível da índia ante uma arcada dentária cravada numa fonte de dor e sofrimento físico fornece o elemento vital que separa índios e não-índios no processo de cura espiritual: a entrega, a confiante submissão física e psicológica aos cuidados de uma tradição milenar. Os índios abandonam-se ao pajé; os não-índios, digamos, capitulam. 
 
É que o índio em estado primitivo buscam a cura espiritual, sabem que o tratamento não se restringe apenas ao ataque a manifestações físicas. A xamã Tatantin Rua Retée pereceu aos 104 anos sem nunca ter ingerido um remédio farmacêutico. O índios se entrega porque sabe que as duas partes precisam estar integradas, um alinhamento, contudo, não observado com o não-índio.
 
Geralmente o pajé não obtém êxito na cura espiritual do não-índio numa primeira sessão. O processo de entrega do não-índio obedece a outro ritmo, mais lento, por isso que, antes, ele capitula ao pajé. Se a construção da confiança não é imediata, o pajé não obtém a cura na primeira sessão, como geralmente ocorre. Daí a recomendação de mais sessões.  
 
Além de alertar para os desafios da vida indígena, o discurso de encerramento do daquele primeiro dia de curas espirituais emocionou ao exaltar a memória de Tatantin Rua Retée, a quem chamou de figura magistral, destacando, sobretudo, que, mesmo não tendo encontrado a Terra Sem Males, a xamã tornou-se um espírito presente e inseparável da vida dos índios. O único cachimbo de argila no Opu pertencera à xamã e reforçou a presença dela.
 
Na virada dos anos 60 para os 70, Tatantin conduziu seu grupo, oriundo da República Guarani, constituída por jesuítas numa vasta área que abrangia territórios do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, desde o Rio Grande do Sul pelo litoral brasileiro em busca da Terra Sem Males. Um dos traços mais fortes da cultura guarani é a crença de que eles estão de passagem neste planeta, a caminho desse local idílico e abençoado, à procura do qual se puseram após a destruição da república por Espanha e Portugal. 
 
Suspeitou tê-la encontrado quando o grupo atravessava a foz do Rio Piraquê-Açu, em Santa Cruz. Seis quilômetros depois encontraram os Tupinikim e lá se estabeleceram; a xamã considerou que havia enfim encontrado à Terra Sem Males. Anos mais tarde, os eucaliptos e os interesses econômicos da então Aracruz Celulose (hoje Fíbria) os expulsaram. Foram para Guaparari, mas voltaram para a Aracruz e lá estão até hoje.
 
Tatantin viveu por 104 anos e morreu no Espírito Santo; foi enterrada no cemitério de Santa Cruz. Pouco antes de sua morte, ela, por situações que identificava como uma xamã, como a morte prematura de algumas crianças, e outros episódios que ocorreram, a levaram à conclusão de que tinha errado ao apontar a região como o local da Terra Sem Males.
 

Ao exaltar a vida e trajetória da xamã, o discurso de encerramento do pajé pode ser interpretado como um chamado enérgico em defesa da vida indígena. Ali o político e o religioso se entremearam ao rememorar o passado guarani, seus xamãs e ancestrais.

 
Uma celebração musical encerrou o primeiro dia de cura espiritual do pajé Laurindo Tupã em Aracruz. Ele empunhou um violão, voltou-se para a porta fechada do Opu e iniciou uma música animada, enquanto homens e mulheres o reverenciavam com a cabeça. Era especial a satisfação dos jovens, presença significativa no local: sinal auspicioso de que as tradições indígenas terão continuidade.
 
Mas nem tudo são alegrias. O pajé Laurindo Tupã identificou que as aldeias manifestam muitas doenças, razão pela qual disse que deve voltar para novas sessões de cura espiritual em agosto.

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