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‘A gente vê a felicidade, primeiro, na saúde da nossa família’

Camponês em Pinheiros fala sobre o necessário conjunto de políticas públicas para produzir alimentos saudáveis

Assistência técnica, financiamento bancário específico, garantias de comercialização e fixação da juventude no meio rural, através da Educação do Campo. Esse é um conjunto básico de políticas essenciais para garantir a dignidade dos agricultores familiares na produção de alimentos saudáveis, sem venenos e com respeito à natureza e à saúde do produtor e consumidor. 

Há muito conhecido dos agricultores que já adotaram, estão em transição ou desejam ingressar na Agroecologia, esse conjunto de medidas estruturais ainda está longe de ser prioridade dos governos capixaba e brasileiro, ainda capturados pelo poder político da bancada ruralista no Congresso e Assembleia Legislativa, bem como pela pressão direta dos empreendimentos latifundiários voltados para a exportação de commodities que, no caso do Estado, se fazem representar principalmente pela cafeicultura e eucaliptocultura

Os relatos cotidianos sobre isso estão parcialmente contemplados no 1º Anuário Estatístico da Agricultura Familiar, produzido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), e lançado na Semana da Agricultura Familiar, no final de julho. No Espírito Santo, consta que somente 21% dos agricultores receberam assistência técnica, ao passo que 63% fizeram uso de ao menos um agrotóxico no ano da pesquisa de campo, em 2017. 

O camponês Salvador Lima de Aguiar, do Sítio Guanabara em São João do Sobrado, município de Pinheiros, extremo norte do Estado, conta como o seu sonho antigo de trabalhar com a agroecologia começou a ser realizado, quando passou a ter acesso a esse conjunto primordial de políticas públicas, primeiro por meio do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), depois com financiamento do Banco do Nordeste (BNE).

Maria Josefa Garrido Valverde

“Sempre tinha esse sonho, participava dos movimentos sociais buscando informação, aquele dom de ver a natureza, respeitar a natureza. Vendo a realidade do nosso município, a outra forma de agricultura [convencional] não é viável para a gente que é pequeno. Quando ia ao banco fazer financiamento, ficava tudo para as empresas, ficava endividado”, conta Salvador. 

“A gente plantou café, mas não trabalhava com o pacote de adubo e veneno, só batia algumas caldas [agroecológicas], mas o café clonal não aceita e não deu certo. Aí a gente acabou com o café e começou a plantar cedro, ipê roxo, ipê amarelo, ipê branco, ipê rosa. Entre os ipês, plantamos glicínia, para fixar o nitrogênio no solo. E ainda plantamos banana, cacau, tudo junto. Esse projeto foi o Incaper que fez, em menos de um hectare. Agora a gente faz as podas da banana, o controle dela e joga tudo no pé dela. Depois entramos com lavoura branca, milho, abóbora…”, descreve. 

Em 2019, chegou o Banco do Nordeste, com o Sistema Agroflorestal (SAF), aperfeiçoando o trabalho já iniciado com apoio do Incaper. “O Banco do Nordeste vê a realidade do produtor, tem o dinheiro para a mão de obra também, que nos outros não têm, é só para as empresas”, compara. 

O projeto incluiu bananas, árvores nativas e frutas num extrato mais alto e, no meio das linheiras, lavoura branca de feijão, milho, feijão de rama, aipim…”A gente começou a vender na feira e agora entregamos no CDA [Compra Direta de Alimentos, do governo do Estado] e no PAB [Programa Alimenta Brasil, do governo federal, em substituição ao PAA – Programa de Aquisição de Alimentos]”, diz, salientando a importância das políticas públicas de comercialização. “Os programas ajudam muito, porque você sabe onde vai entregar. Quando levava para feira em Pinheiros, era bem vendido também”.

Maria Josefa Garrido Valverde

Uma das dificuldades do começo da transição agroecológica, ressalta Salvador, é a incompreensão dos vizinhos, que não reconhecem a relevância do trabalho. “Falam que a gente é doido quando começa a plantar pé de árvore. Mas a gente sabe que o resultado é demorado. E é um processo gostoso, a terra vai mostrando para a gente que tem a capacidade de melhorar. Quem trabalha com agroecologia tem que observar as mudanças na propriedade, o mato vai mudando. Já tem muita melhora no solo. Era mais ácida e compactada, hoje mais solta, fácil de trabalhar”. 
É visível também, destaca, o maior equilíbrio do ambiente agroecológico em relação aos demais. “A vizinhança está tendo uma praga o caramujo africano, não está controlando. Aqui no sítio aprece alguns, mas com equilíbrio, faz um trabalho que mantém o controle”.
A saúde das pessoas que trabalham sem venenos também mostra superioridade. “Aqui no nosso município está morrendo muito trabalhador no campo por causa de agrotóxicos. Um rapaz trabalhou 20 anos na fazenda e está numa condição que não tem recurso para ele. Na fazenda dele, todo mês morre dois, três, de intoxicação dos rins, vai morrendo aos poucos”, lamenta.
As terapias holísticas, como homeopatia, que a família aplica no solo, nas plantas e nas pessoas, traz uma leitura ainda mais ampliada. “A gente faz terapia e vê muito envenenamento, até de criança, por causa de agrotóxico na água da escola. Os médicos não acham nada, não sabem o que é. Mas na terapia a gente vê aqui e consegue salvar quando é criança”. 
‘O solo está com muita fome’
A dificuldade ainda é com a matéria orgânica para cobertura do solo, uma exigência grande na agroecologia. A de Salvador vem toda de dentro do sítio, não sendo trazido nada de fora. “A gente faz cobertura verde com capim, capim de porco e insumos da lavoura, processo de roçagem. Mas às vezes não tem máquina para adiantar o processo de aproveitar as podas das árvores. Onde a terra ainda está descoberta, a gente vê a fraqueza, a água logo evapora. E o solo está com muita fome, joga matéria orgânica e em 90 dias some. O solo está com muita fome, precisando de muito alimento”.
Maria Josefa Garrido Valverde

A paisagem do sítio também é um alento para os olhos, conta Salvador. “Em volta da minha morada já tem umas árvores, mais de vinte anos que tem essa moitinha de árvore, não entra animal dentro dela, é reserva permanente. Tem uma barragem licenciada no Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal] também”. 

A resiliência do ambiente como um todo traz a certeza de ter feito as escolhas certas. “A gente acha bonito chegar no sítio e ver os animais, os pássaros comendo as frutas. Nas outras propriedades os animais não comem nada e se perde muita coisa. O processo das frutas na agroecologia faz elas aguentarem mais tempo na geladeira, no armazenamento, e são mais saborosas, mais doces, um pouco pequenas, mas vale a pena”, compara. “A gente vê a felicidade. A gente que tá mexendo, começa primeiro na saúde da nossa família. Apesar de que ainda a gente compra alguns alimentos fora, com químico, mas reduziu bastante”.

Outros elementos fundamentais citados por Salvador na descrição da rede de apoio para a realização da agroecologia são os movimentos sociais, as associações de produtores e a educação do campo. No norte do Espírito Santo, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) tem capilaridade significativa, promovendo formações técnicas e políticas e incentivando o associativismo para produção, certificação e comercialização, e também atuando junto às Escolas Família Agrícola (EFAs). “O MPA trouxe essa semente para o pequeno agricultor. Os movimentos sociais trazem formação para a nossa realidade”. 

Esse caldo cultural agroecológico gera uma profusão de terapeutas ligados à homeopatia, radiestesia e outros técnicas de cura energética. Uma das principais referência nesse trabalho é o agricultor Primo Dalmasio, proprietário do Sítio Pedra do Presidente e presidente da Associação Universo Orgânico, em Nova Venécia. “Quando a gente vai lá na propriedade dele, vê aquele orgulho, aquela felicidade dele, fica até emotivo. Os filhos que trabalhavam fora, na cidade, voltaram”. 

A presença dos filhos também é motivo de felicidade para Salvador e a esposa, Maria Aparecida Costa de Souza Aguiar. Clévio estudou em EFA e atualmente cursa faculdade de Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências Humanas e Sociais e é bolsista do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (Icepi) como educador popular em Saúde. Formação escolar que, ressalta Salvador, proporciona um apoio fundamental. “Meu filho é meu grande incentivador”, afirma, orgulhoso. No mesmo caminho, Isabela deve ingressar na EFA de Pinheiros, a mesma em que Clévio estudou. “A gente nasceu aqui na zona rural e não consegue viver na cidade”, reforça o patriarca.

Maria Josefa Garrido Valverde

Educação do campo

Liderança camponesa no norte do Estado, membro da coordenação estadual do MPA, Valmir Noventa reforça o testemunho da importância da educação do campo como política pública essencial para frear o êxodo rural, manter a juventude no campo e permitir o crescimento da agricultura familiar e da agroecologia. “A mão de obra reduziu muito em virtude da juventude não estar mais no campo. A família acaba arriscando menos em cultivos diversificados, hortas, porque se fizer, vai faltar mão de obra”. 

A agroecologia, afirma, não pode estar descolada das necessidades no território, de educação, saúde… são políticas públicas do território que precisam estar interligadas. “Se uma escola do campo fecha, de certa forma desestrutura a comunidade, inclusive economicamente. A escola está diretamente ligada ao cotidiano da comunidade, à vida das pessoas. São práticas de relações das comunidades às vezes seculares, que fortalecem todo o conjunto: religiosidade, cultura, modo de vida, saberes. A educação perpassa por tudo isso. Não dá pra pensar em mudança de produção sem pensar em fortalecer a educação do campo”, sentencia.

Maria Josefa Garrido Valverde

Mas entre os gestores políticos, aponta, o tema ainda não é compreendido. “Para os políticos é um caso superado, eles não querem investir na Educação do Campo. Agora é o ‘agro moderno, pop’, e para isso, precisam de jovens que vão disputar mercado de trabalho mais tecnificado, fora das propriedades familiares, por isso não querem que os jovens façam Escolas Família”. 

Esse ataque às EFAs e outras formas de Educação do Campo é uma das causas do baixo crescimento da agroecologia. Baixo, se comparado ao crescimento avassalador do consumo de agrotóxicos no Brasil, um dos maiores do mundo. Fazendo eco ao relato do colega Salvador, Valmir também elenca a escassez de políticas públicas de comercialização, financiamento e assistência técnica. 

“Temos um número muito grande de famílias que ficam na transição agroecológica a vida toda. Porque para adotar práticas 100% puras, precisam de uma segurança econômica, de venda da produção. Então fica na transição: usa material orgânico, caldas, sementes crioulas, mas também adubo químico, em algum momento de aperto, que chove mais, usa herbicida”, descreve. 

Já para os agrotóxicos, o espaço é alargado constantemente pelos gestores públicos, pressionados pelo mercado da morte. “É muito fácil ter acesso, está em todo lugar, a aplicação é simples, o agricultor só precisa se preocupar com EPI [Equipamento de Proteção Individual], sem maiores exigências. Mas nem sobre isso há fiscalização. Então há um crescimento muito maior. Onde tem monoculturas de café, pimenta-do-reino ou hortifrutigranjeiros, há consumo muito maior de agroquímicos. Porque o modelo de produção mais concentrada, exportadora, exige. É mais difícil fazer agroecologia nesse tipo de ambiente”. 

A exigência pelo consumo crescente de venenos vem do solo e das sementes, observa Valmir. “O solo é um limitador, mas muito mais que isso, são as sementes e as mudas, que são muito mais produtivas, mas são muito mais exigentes de agrotóxicos. Aquela semente híbrida que conhecíamos não existe mais, agora é uma semente melhorada e importada, chinesa”. 

Também a adubação química é mais exigida nesse cenário. “Exemplo é o café. A maior parte dos agricultores familiares olha como perspectiva boa”, pontua. Se antes produziam 50 sacas e agora 150 sacas, com aporte das novas sementes, chinesas, mais adubo químico e agrotóxicos, e movimenta mais dinheiro, parece que está tudo bem. Mas o lucro líquido nem sempre é realmente contabilizado. “Geralmente essa conta ele não faz, se o lucro é maior”. 

Assim, a sensação é que “café e pimenta do reino é dinheiro vivo”, enquanto “quem tem alface, jiló, inhame, abóbora…fica na corda bamba o tempo todo. Por isso precisa de uma política pública estruturante que não deixa o agricultor vulnerável na venda”. 

Alimentos e empregos

E agricultor sem garantia de venda, significa merenda escolar menos saudável, famílias na linha de pobreza e extrema pobreza idem, famílias agricultoras sem produzir o próprio alimento, e famílias nas cidades com poucas opções de alimentos saudáveis para comprar. 

Mesmo com todo o ataque do “agro-pop”, no entanto, o Anuário da Contag e do Diesse registra: “a agricultura familiar brasileira é a principal responsável pelo abastecimento do mercado interno com alimentos saudáveis e sustentáveis, que busca a preservação dos recursos ambientais, a cultura rural, gera ocupações rurais e promove o desenvolvimento sustentável do País”.

Os números são impressionantes: “com apenas 23% das terras, os 3,9 milhões de estabelecimentos familiares geram 10,1 milhões de ocupações no campo (67% das ocupações), respondem por 23% do valor bruto da produção agropecuária brasileira e pela dinamização econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes (68% do total)”.

Por essas e outra razões, sublinham as entidades, “a FAO declarou a Década da Agricultura Familiar (2019-2028), por meio da Resolução 72/239 de 2017, considerando seu papel também na preservação cultural e ambiental e as suas diferentes formas de viver e produzir. São mulheres, homens e LGBTQIA+, jovens e pessoas idosas, agricultores(as) familiares, assentados(as), reassentados(as), pescadores artesanais, quilombolas, indígenas, silvicultores, aquicultores e extrativistas que, de sol a sol, dedicam-se a promover a agricultura, a pecuária e atividades não agrícolas. Desse modo, contribui diretamente para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [ODS], sobretudo no combate à pobreza, à fome e a redução das desigualdades”.

Os empreendimentos familiares, acentuam, “produzem a diversidade de culturas, o que gera um impacto positivo na qualidade dos produtos e na relação com o meio ambiente. São fundamentais para influenciar as políticas de combate à inflação dos alimentos, promover a soberania e segurança alimentar e nutricional, gerar trabalho e distribuir renda”.

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