Na repactuação do crime da Samarco/Vale-BHP, defensora pública Mariana Sobral ressalta importância do fortalecimento de políticas públicas
Às vésperas do desaniversário de seis anos do rompimento da Barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, em Mariana/MG, a “centralidade na vítima”, pressuposto essencial para alcançar um justo processo de reparação e compensação dos danos, ainda é um horizonte distante da realidade. O entendimento é expressado pela defensora pública Mariana Sobral, em entrevista exclusiva a Século Diário.
Extremamente judicializado e com a execução de ações concentradas na Fundação Renova, o processo tem intensificado o esgarçamento do tecido social nas comunidades atingidas, lamenta a defensora, apontando raras exceções – algumas comunidades e públicos onde a Defensoria Pública teve pernas para realizar um trabalho mais próximo aos atingidos, via de regra com apoio do Ministério Público Federal (MPF). Nesses casos, a “sensação de justiça” prevalece sobre a angústia e a desesperança.
Na repactuação, que se inicia sob condução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mariana Sobral diz que a melhor “redução de danos” que se consegue vislumbrar é ter como diretriz essencial o fortalecimento de políticas públicas, com foco em saúde, educação, assistência social.
Passados seis anos do crime da Samarco/Vale-BHP contra a bacia do Rio Doce, em que todos os acordos extrajudiciais firmados entre a Renova, as empresas e as instituições de Justiça foram descumpridos, de que forma sintetizar a distância que separa a realidade das ações de reparação e compensação já cumpridas e em curso, e o que deveria já ter sido alcançado?
Os principais problemas da reparação e compensação do Rio Doce resumem-se no dilema de como efetivar dois pontos fundamentais: acesso à informação e participação das comunidades atingidas. Apenas com a efetivação desses direitos, as comunidades poderão compreender o que se passa e participar de forma ativa da construção de soluções. A experiência da DPES nesses seis anos demonstra que os casos em que houve participação, informação e construção coletiva alcançaram a sensação de justiça e de efetivação de direitos entre as pessoas envolvidas, podendo citar como exemplo os atingidos do Rio Pequeno, em Linhares, dos camaroeiros da Enseada do Suá e dos indígenas da comunidade de Comboios, Aracruz/ES.
A Defensoria Pública do Estado assumiu alguns públicos prioritários para seu escopo de atuação, em virtude da reduzida equipe e da complexidade do caso. Quais são eles e quais as principais conquistas garantidas até o momento?
A DPES atua prestando assistência jurídica aos atingidos e atingidas desde o rompimento da barragem. Foram anos indo às comunidades, escutando os pleitos, e definindo estratégias de atuação em conjunto, destacando a luta do Estado do ES para o efetivo reconhecimento do litoral como impactado. A pandemia e a judicialização em massa das demandas, esvaziando até mesmo a governança criada, ensejaram mudança de estratégia e a necessidade de termos prioridades de atuação. O ano de 2021 foi marcado por intenso trabalho com a comunidade indígena de Comboios, a cadeia de apoio dos camaroeiros da Enseada do Suá e as mulheres atingidas, mantendo, ainda, os diversos recursos e manifestações processuais feitos em conjunto com as demais instituições de justiça em temas sensíveis e bastante caros para Defensoria, como auxílio financeiro, quitação geral e assessoria técnica.
Os camaroeiros foram o primeiro grande acordo celebrado a partir da autodeclaração? Como foi possível alcançá-lo, considerando que o juiz da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte [Mario de Paula] já afirmou publicamente que não reconhece autodeclaração como instrumento jurídico legítimo nesse processo?
O processo de indenização por perdas econômicas dos camaroeiros da Enseada do Suá, em Vitória, foi um caso de construção coletiva de matriz de danos que contou com a participação da comunidade na elaboração de soluções, em especial, na definição dos danos e dos documentos comprobatórios. A autodeclaração coletiva utilizada veio como um plus aos documentos que foram necessários para montar o quebra-cabeça e definir quais seriam as embarcações e quem seriam as pessoas que tiveram perda econômica em razão da proibição da pesca na Foz do Rio Doce, com consequente aumento de custo da pesca de camarão. A participação no processo, sem dúvidas, confere às pessoas a sensação de pertencimento e de centralidade das decisões necessárias a qualquer processo de reparação.
Outra recente conquista foi o acordo com a Terra Indígena de Comboios, em que chamou atenção para o respeito ao sentido de coletividade, com todas as famílias recebendo o mesmo valor de indenização. Como foi possível atender a esse pedido, protegendo a comunidade, pelo menos em parte, do esgarçamento do tecido social vivenciado ao longo de praticamente todo o território atingido? Como seria aplicar essa equidade em toda a bacia? Ainda é possível? É desejável?
A reparação e a compensação devem ser adequadas em cada caso. A complexidade e a extensão dos danos impedem que soluções sejam idênticas em toda a bacia. Faz-se necessário que se confira às comunidades instrumentos de participação e de controle que lhe permitam discutir e encontrar soluções que melhor se adequem à realidade vivenciada de danos e de reconstrução da malha social. No caso da comunidade indígena de Comboios, foi o que fizeram. A decisão de indenização equânime a todas as famílias foi tomada pela comunidade, defendida pelas lideranças na mesa de negociação, e finalizada como um precedente interessante. As lideranças tiveram sempre o cuidado e a preocupação que documentos comprobatórios não fossem um óbice para algumas famílias serem incluídas. Além de receberem por três danos, é importante ressaltar que todas as famílias lá residentes na época do rompimento estão abarcadas dentro do acordo que contou com assistência jurídica integral e gratuita.
As mulheres também têm sido trabalhadas de forma especial pela DPES. A princípio, parece que com esse público os avanços ainda não aconteceram. Como está a situação atual da busca por um tratamento não machista às mulheres atingidas?
Passados dois anos do rompimento, as mulheres atingidas manifestavam nas reuniões que tinham mais dificuldade de serem incluídas de forma autônoma e independente nos programas socioeconômicos da Fundação Renova, em especial AFE e PIM [indenização]. Juntamente com o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], foram feitas reuniões só com mulheres atingidas capixabas e levantadas as principais demandas, o que resultou em um relatório preliminar, disponível no site da Defensoria. Após esse movimento, os experts do MPF, Ramboll [consultoria ambiental] e FGV [Fundação Getúlio Vargas], também lançaram alguns produtos específicos com recorte de gênero. A luta das mulheres atingidas do Rio Doce trouxe reflexos positivos em Brumadinho, principalmente quanto à autonomia do auxílio de subsistência. Todavia, aqui ainda há muito o que se avançar para mitigar os danos ocorridos em razão da postura inicial quando da realização do cadastro, que funciona como porta de entregada para os demais programas. Considero que há um débito com as mulheres atingidas e que devemos cobrar ações, programas e fortalecimento de políticas públicas específicas para mulheres.
A repactuação, coordenada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tem se mostrado uma negociação que visa, principalmente, conceder aos dois estados – Espírito Santo e Minas Gerais – maior poder de negociação e realização, com os recursos da compensação sendo direcionados pelas empresas diretamente para os governos, sem passar pela Fundação Renova. A propalada “maior participação dos atingidos” tem se limitado a três audiências públicas remotas, em que os atingidos relatam grandes dificuldades de participação e falta de garantia que o pouco do que conseguem relatar será levado em consideração. Ainda assim, podemos apontar que há um avanço na governança das ações de reparação e compensação, quando comparada com a gestão atual, centrada na Renova?
Sem dúvida, o maior gargalo da repactuação é a garantia de controle e participação social, principalmente quando instrumentos importantes para viabilizar o exercício de tais direitos não foram efetivados até o momento em maior parte da bacia. Sem assessoria técnica, direito garantido em lei no território mineiro e com projeto de lei em discussão nacional no Senado, fica inviável pensar em qualquer tipo de participação que diminua a disparidade entre as partes envolvidas: atingidos e empresas. As instituições de justiça têm se esforçado bastante para ouvir as demandas, mesmo entendendo que não é o ideal de participação. Enquanto DPES, acreditamos que o fortalecimento de políticas públicas deve ser posto como diretriz dentro da repactuação, na medida em que trará retorno às comunidades de forma mais estável e em áreas de extrema importância, como saúde, assistência social, educação, entre outros.
Quais caminhos conseguem ser vislumbrados hoje para que a contratação das Assessorias Técnicas Independentes seja cumprida?
Acredito que o modelo de Assessorias Técnicas e de participação acordado entre as partes e não cumprido até o momento restou descaracterizado. O tempo é um grande elemento desmobilizador. As pessoas ficam descrentes em soluções que entendem justas. Assim, pode-se afirmar que o intervalo grande entre o rompimento, o acordo e sua implementação impossibilitam que a efetividade do que foi pensado seja alcançada. É um grande desafio reformular e adequar ao tempo posto, garantindo às comunidades que possam ter em campo as assessorias técnicas que escolheram há mais de dois anos, através de um processo realizado em toda a bacia com lançamento de edital, requisitos de legalidade, amplo debate e publicidade. O Espírito Santo possui apenas uma ATI instalada [comunidade quilombola de Degredo, em Linhares] e é visível no nosso trabalho a diferença que tal direito faz para as pessoas da comunidade.
Que outras prioridades é possível apontar para que o processo de reparação de fato caminhe para algo mais próximo de justiça e legalidade?
Particularmente, entendo justiça como um sentimento e só os atingidos e as atingidas poderão expressar se foi alcançando. Por este motivo, é indispensável que toda gestão de desastre tenha como ponto principal a centralidade das vítimas, o que demanda a garantia, desde o começo, de instrumentos de controle e de participação social com acesso a informações de forma ampla, célere e adequada. Como já expressei acima, acredito que, passados quase seis anos e muitos erros cometidos, com acordos não cumpridos e decisões judicias que acirraram ainda mais os conflitos dentro das comunidades, é necessário pensar como reduzir os danos também do próprio processo de reparação. As comunidades precisam urgentemente receber respostas às suas principais demandas e a repactuação surge como um imenso desafio para as instituições de justiça e o Poder Público.