“Ô no fundo do mar tem uma pedra
Ô debaixo da pedra tem água
Ô debaixo da água tem areia
Quem mora no mar é sereia
É a sereia, é a sereia,
No fundo do mar tem areia
Quem mora no mar é sereia”
O conhecido congo da Sereia, cantado em rodas de congo do litoral capixaba, inspira novos versos que não rimam em nada, nem com a letra da música nem com saúde, justiça ou moralidade: “É a sereia, é a sereia, no fundo do mar tem areia, tem lama e muita impunidade”.
Em dias de sol e vento sul como deste sábado (05), a lama de impunidade e mistério que contamina o lar das sereias sobe à tona e tinge o mar da Grande Vitória de um marrom forte, que não acontecia antes do final de novembro de 2015, quando os rejeitos de minério da Samarco/Vale/BHP começaram a se espalhar pelo mar capixaba, ao norte e ao sul da foz do Rio Doce.
O fenômeno é ainda mais intenso nas baías e enseadas próximos às Pontas da costa, como se pôde observar nessa ensolarada manhã de surfe em Praia de Carapebus, na Serra.
“O vento sul ressuspende o sedimento que vai se depositando lentamente no fundo do mar, principalmente nas pontas, como Tubarão, Fruta, Ubu. Esses locais são pontos de acumulação de sedimentos. Acumulam aí e quando entra o vento sul, resssuspende tudo, e a costa fica marrom”, explica, didaticamente, o oceanógrafo Joca Thomé, coordenador nacional do Centro Tamar/ICMBio, que acompanha a movimentação da “pluma de sedimentos” desde o início do monitoramento feito pelo órgão, em conjunto com os institutos federal e estadual de meio ambiente.
O sobe e desce da lama no mar, fato notório entre os pesquisadores e acadêmicos, ainda é de pouquíssimo conhecimento entre a população, que faz uso recreativo, esportivo ou profissional das praias.
Dinheiro é mais importante
“Eu não tinha conhecimento que a lama estava aqui. Dá medo”, responde a recepcionista de Belo Horizonte Marisa Foureaux, em visita a Carapebus, quando é informada pela reportagem de Século Diário sobre a presença, hoje suspensa, da lama na sua praia preferida no estado. Sobre a total ausência de estudos sobre os problemas de saúde que podem afetar os usuários do mar, a resposta é rápida, sem titubear: “Nem vão fazer. Porque não é interesse político. A nossa saúde não é tão importante quanto o dinheiro da Samarco”, reclama.
Dramaticamente, o desconhecimento não é privilégio dos turistas. “Achei que tinha dissipado lá em Regência. Mostraram fotos de lá esses dias, com a água limpa, deu vontade de voltar. Aqui eu nem imaginava que estava”, diz Jovelino Pereira, técnico em manutenção mecânica e morador de Vitória e surfista na praia serrana e em Regência, mas que, desde que aconteceu o crime, não voltou à foz do Rio Doce.
Já os estudantes universitários Lucas Vescovi, Ronnan Jucá e Paulo Henrique Cavalcanti, também assíduos dos mesmos dois points de surfe, afirmam conhecer a presença da lama na Grande Vitória e em todo a costa. “Assisti à palestra do professor Adalto”, informa Lucas, referindo-se ao oceanógrafo Adalto Bianchini, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), em sua última apresentação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sobre os dados consolidados das três expedições realizadas no litoral capixaba.
O surfe não diminuiu em nada, mesmo nas áreas mais afetadas. “Três meses depois já estava em Regência”, conta Lucas, enquanto aponta as manobras dos colegas que já estão em mar aproveitando o dia especial para os amantes das pranchas.
Os três sabem da contaminação por metais pesados, que já foi constatada em peixes e animais filtradores, e que pode provocar câncer e vários distúrbios não só na fauna marinha, mas, possivelmente também, nos humanos. “Não consumo peixe, mas sei que o contato com a pele também pode provocar alguns problemas”, diz. Mas, “é um risco que a gente corre”, assume.
Comoção nacional
Ronnan faz coro: “Tem vezes que a gente fica no mar o dia inteiro em Regência. É preocupante”, diz, destacando sua solidariedade com os moradores das comunidades mais afetadas. “Uma amiga nativa de Regência, que tem uma pousada, diz que não é todo mês que a Samarco paga o auxílio. A última vez que fomos lá e lotamos a pousada, ela agradeceu, dizendo que com aquele dinheiro é que iria passar o mês”, relata.
“O descaso da empresa com os moradores e pessoas que desfrutavam o mar é muito grande”, revolta-se Paulo Henrique. “Foi um crime que não afetou só o Espírito Santo. O Brasil todo ficou comovido”, opina. “É duro perder tudo e não ter como reiniciar a vida”, ecoam, nesse instante, as palavras da mineira Marisa, ouvidas há alguns minutos.
O guarda-vidas, e bodyboarder, Arnaldo de Jesus Pereira coloca ainda mais tempero na sopa de poluentes que assola sua região de moradia, trabalho e lazer: “Já tinha a poluição da Vale e da Arcelor. Agravou mais. A gente continua usufruindo do mar, surfando, nadando, mas sabe que tá prejudicando a nossa saúde”.
E assim, de lama, pó, segredos e impunidades, sopram os ventos pelas bandas do Espírito Santo. Principalmente os ventos do sul e principalmente nas Pontas. Pontas da costa que, a olho nu, revelam só a “ponta do iceberg” de um problema histórico e cultural, enraizado, ainda, nas bases da política e da economia do do Espírito Santo.