Sanitarista Ricardo Franci defende avanço do plano estadual, com marcadores mais modernos também para o sistema úmido
“Num horizonte mais distante, de vinte a trinta anos, a transição tecnológica para o saneamento seco vai acontecer, é obrigatória. Inclusive com conceito das biorrefinarias urbanas. O que o futuro aponta, os combustíveis de segunda e terceira geração, são os combustíveis gerados por resíduos. Na malha urbana das cidades do futuro, teremos biorrefinarias que irão receber lixo e dejetos de saneamento seco, resíduos de restaurantes e outros, e esse material vai ser processado nas biorrefinarias, gerando combustível”.
O relato do futuro do saneamento e da produção de combustíveis nas cidades do planeta Terra – que nos remete a uma das mais icônicas cenas do filme De Volta para o Futuro – é do engenheiro civil, sanitarista, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e empresário Ricardo Franci.
No escritório de sua empresa, na Barra do Jucu, em Vila Velha, os 15 funcionários usam diariamente um banheiro seco que, apesar de modelado para uma demanda menor, tem mostrado resultados satisfatórios e, até o momento, bem avaliado pelos usuários, segundo pesquisa detalhada de desempenho feita para um estudo de mestrado sobre o assunto. “Não foi uma decisão democrática. Fechamos o banheiro convencional e todos são obrigados a usar o seco”, gargalha, defendendo-se tratar-se de nobre causa. E, mais importante, “de maneira geral está todo mundo muito satisfeito”, afirma.
Na entrevista exclusiva a seguir, Ricardo Franci discorre sobre os passos que o Espírito Santo deve trilhar para sair de uma cobertura de saneamento um pouco abaixo da já baixa média brasileira, usando tecnologias caras e ineficientes, com materiais de construção não aplicados em outros lugares, por serem desvantajosos, até chegar no almejado futuro já experimentado em algumas cidades da Europa, México, China, África do Sul e Bolívia, onde a geração de excretas serão uma excentricidade anacrônica em extinção e os banheiros secos serão presenças desejadas em instalações prediais urbanas e rurais, das mais populares às de mais elevado padrão.
Como está a cobertura capixaba de tratamento de água e esgoto?
O abastecimento de água cobre 92% da população urbana. Considerando a rural, cai pra 81%. São percentuais levemente inferiores à média do Brasil. O esgotamento sanitário é muito problemático há muito tempo e também coincide com a média do Brasil, sendo que há estados bem avançados como São Paulo, Distrito Federal e Paraná, e outros em condição de abandono.
A coleta e tratamento de esgoto são situações extremamente críticas em termos de saúde pública e meio ambiente. Essa quantidade de esgoto das casas vai para os corpos d’ água ou subsolo, o que causa poluição em rios, lagos estuários, praias e lençol freático. No campo, os riscos de contaminação existem para quem se abastece com água de poço, se o esgoto não for corretamente coletado e tratado.
Em termos percentuais, a rede coletora atende a 58% da população, mas menos da metade é tratado. Então, do esgoto produzido nesse momento no Estado, um pouco mais da metade é coletado e apenas uma fração é tratada. Muito esgoto bruto ainda está indo pra natureza.
O banheiro seco é uma alternativa aplicável à realidade do Espírito Santo?
Pelo que eu vi na Suécia e na Dinamarca, isso é perfeitamente factível no Espírito Santo. Vi gente altamente esclarecida e com dinheiro usando essas tecnologias em suas casas. Não é tecnologia de pobre ou de área rural apenas. É também, mas não só.
Para zona rural pode ser já. Banheiros secos bonitos, confortáveis, com reciclagem de nutrientes, é o que há de mais inteligente. Agora, para que isso seja viável em cidades com adensamento populacional, é muito importante que o município compre essa briga de legislar ou regular à maneira como as edificações são feitas. Se a gente quiser fazer isso em um edifício com vários andares, multifamiliar, muito provavelmente um engenheiro que vai analisar o projeto não vai autorizar. Porque o código de obras não contempla isso, todo o arcabouço regulatório municipal não vai autorizar.
Na Europa já há prédios com saneamento seco, com no máximo três andares. Para edifícios maiores há possibilidades, mas ainda não se convergiu para uma solução de consenso. Utilizar isso no padrão construtivo de Praia do Canto e Praia da Costa é impossível hoje. O saneamento seco exige muita área na edificação, para evitar que uma privada fique alinhada com a outra. O tubo de queda não pode ser alinhado com o de baixo. São transições, momentos e idades tecnológicas diferentes.
Quais os primeiros passos que podemos dar?
A transição hoje é passar para um saneamento, ainda molhado, mais inteligente. Ninguém vai jogar fora toda uma estrutura cara já construída. Mas pode já contemplar o reuso da água do tratamento do esgoto, aproveitamento dos nutrientes do esgoto (nitrogênio e fósforo) e produção de energia com biogás. Hoje isso é possível, num horizonte de dez anos. O pulo do gato é repensar a maneira como se trata esgoto, o que vai exigir estações de tratamento diferentes, com tecnologias bem maduras, que já funcionam em vários lugares do mundo.
Quais exemplos estão mais próximos de nós?
Há reuso de água em grande escala no Brasil. O maior exemplo é o Aquapolo, em Barueri, São Paulo. Eles fazem um tratamento muito avançado e vendem água de reuso para um polo petroquímico. É um volume de um metro cúbico por segundo, equivalente a uma população de 500 mil habitantes.
O aproveitamento de nutrientes acontece em pequenos exemplos também em São Paulo e no Nordeste. Já em Berlin, você pode ir numa ETE [estação de tratamento de esgoto] e comprar um saquinho de nutrientes extraído do esgoto, na forma de um cristal, estruvita, muito rico em nitrogênio e fósforo. Sai com aquele saquinho de um quilo, meio quilo, pra colocar na sua horta, no seu jardim de apartamento, do quintal.
A produção de energia com biogás é feita a partir de processos anaeróbicos, que permitem a remoção de 70% da matéria orgânica do esgoto sem uso de aeradores, que consomem muita energia. Desde a década de 1990 o Brasil dispõe dessas tecnologias e o Brasil hoje é ponta de lança nesse aspecto. Os sistemas recolhem o biogás e utilizam conversores que permitem a energia química do esgoto e, a partir do biogás, gerar energia elétrica em enormes quantidades.
Existem grandes estações operando assim no Paraná, pela Sanepar, no Distrito Federal, pela Caesb, em Minas Gerais, pela Copasa. A ETE Onça, em Belo Horizonte, trata o esgoto de um milhão de habitantes.
Nenhuma delas no Espírito Santo?
O Espírito Santo fez esforço importante no sentido de aumentar o sistema de esgotamento sanitário, que é composto pela rede coletora, pelo tratamento e pelas tubulações que lançam isso nos corpos d’água, a partir dos anos 2000, por meio de vários programas que captaram recursos e empréstimos internacionais, Prodespol, Prodesan e Águas e Paisagens.
Foi um desperdício, perdemos uma grande oportunidade no tempo, com opções tecnológicas inadequadas, que consomem uma quantidade absurda de energia. E desde então a Cesan tem problemas com pagamento de energia, principalmente nesses sistemas enormes, que tratam esgoto para populações de 200, 300 mil habitantes. Utiliza equipamentos eletromecânicos em grande quantidade. O metro cúbico do esgoto tratado é muito caro por conta do consumo de energia. É o segundo item de dispêndio da empresa, que é consequência da escolha da tecnologia e também da tarifa de energia. O valor que a Cesan paga pela energia é um dos mais caros do país e, por isso, a tarifa cobrada pelo consumidor acaba sendo cara também.
Hoje a gente poderia ter estações que, ao invés de consumir muita energia, poderiam ser produtoras de energia. E aí teria um impacto muito grande em todos os sentidos, além da simplicidade de operação e manutenção que essas tecnologias brasileiras demonstram.
Como podemos avançar nesse aspecto?
Estamos trabalhando em um regime que vai favorecer as privatizações e parcerias público-privadas e é muito importante que haja um norteamento tecnológico muito bem estabelecido, seja pela Cesan, governo do Estado ou Agência Reguladora, que direcione as opções para esse tipo de tecnologia que produz energia ao invés de consumir, que é ambientalmente mais favorável.
O que nós precisamos é que o governo do Estado faça um plano de ação, um plano de saneamento a nível estadual estabelecendo marcadores e metas a serem atingidas. É muito importante que o governo do Estado se faça presente no planejamento das ações de saneamento para o futuro. Não há um grupo que trabalhe em planejamento das ações de saneamento a nível de Estado. Isso é muito importante, porque o Espírito Santo tem a Cesan, que opera a maior quantidade de sistemas, mas também tem as empresas privadas e as autarquias municipais. Como não há um arcabouço institucional que traga um planejamento, isso fica solto, não há diretrizes pré-estabelecidas a nível estadual, um planejamento centralizado que faça com que o governo do Estado estabeleça metas e possa cumpri-las ao longo do tempo. Não tem um plano estadual de saneamento como tem um plano estadual de gerenciamento de recursos hídricos.
Na Bolívia, a lei de saneamento deixou claramente expresso que o saneamento seco é viável e de interesse nacional. Eles autorizam o saneamento seco, sem abrir mão do convencional. Na África do Sul, tem uma cidade chamada Durban com quase metade da população atendida por banheiros secos. A empresa opera as duas modalidades de saneamento e opera muito bem, no azul, superavitária, com capacidade de reinvestimento.
São experiências interessantes que mereciam uma análise de um grupo de trabalho no nosso Estado para que a gente possa olhar pro futuro, aprender com os outros e apontar pra novas tendências e planos de ações que possam modernizar as nossas cidades e não continuar praticando o saneamento que foi concebido na virada do século XIX para o XX e é um verdadeiro absurdo, que a gente lança fezes em água limpa. Não tem cabimento isso. Precisamos olhar pra frente, para essas novas tendências.
Acho que os banheiros secos vão ganhar um amplo espaço nas áreas mais pobres do Brasil. E a gente precisa conseguir desenvolver também bacias sanitárias compostadoras bonitas, modernas e caras, inclusive. Porque esse tipo de equipamento tem uma demanda muito grande em residências de alto padrão. Então, tendo um atendimento ao alto padrão e também às comunidades mais carentes, vamos aos poucos, por esses dois canais, ganhando escala no nosso país.