Programa Reflorestar ainda tem atuação tímida e Cesan e Agerh não têm metas de reflorestamento sob sua gestão
A notícia de que uma medida atenuante para a insegurança hídrica que já afeta o dia a dia dos capixabas será importada do deserto mais seco do planeta pode ser lida como uma confirmação de que, ainda, a recuperação dos outrora abundantes cursos d’água do Espírito Santo não entrou na rota de prioridade dos entes públicos, que continuam pesando a balança dos benefícios fiscais, orçamento e dedicação dos equipamentos públicos de gestão territorial em favor dos algozes históricos dos rios e florestas.
Na mídia institucional, o anúncio foi feito em janeiro, dois meses após a viagem feita ao Chile pelo vice-governador e gestor da Secretaria de Estado de Desenvolvimento (Sedes), Ricardo Ferraço (MDB), e o presidente da Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan), Munir Abud, em que ambos conheceram o sistema implantado no Oceano Pacífico para abastecer residências localizadas no deserto do Atacama, que tem recorde de mais de 1,4 mil dias consecutivos sem chuva.
Os dois gestores lideram o projeto, que integra a Carteira de Parcerias Público-Privadas (PPPs) do Estado e já foi validado pelo Conselho Gestor do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Os territórios onde o governo quer instalar as usinas de dessalinização são a região da Grande Vitória e os municípios de Anchieta, no sul, e Aracruz, no norte, sedes de duas grandes poluidoras com imensos passivos socioambientais no Estado, respectivamente a Samarco Mineração e a Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose).
A previsão de Ricardo Ferraço é de que a usina tenha capacidade para converter 1,1 mil litros de água salgada em doce por segundo, “volume compatível para abastecer uma cidade com mais de 550 mil habitantes”. O edital de Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) deve ser lançado ainda neste primeiro semestre, segundo o presidente da Cesan, Munir Abud.
Contraste nos investimentos
Três semanas após esse informe, a própria Cesan publicou em suas mídias que a causa da elevada turbidez da água, que tem levado a sucessivas interrupções no abastecimento de parcela significativa da região metropolitana é o mau uso do solo nas bacias hidrográficas em que o maior adensamento urbano do Estado está localizado.
“Parece contraditório, mas quando chove muito, o abastecimento de água para a população pode ser afetado. Isso acontece por causa da grande quantidade de lama e outros detritos que as chuvas levam para o leito dos rios. São as florestas, nos topos dos morros, e as matas ciliares, nos fundos dos vales, que protegem os cursos d’água e impedem que todo esse material chegue ao rio. Porém, como essas áreas estão degradadas, há uma piora expressiva na qualidade da água que a Cesan capta nos períodos de chuva forte, dificultando o tratamento e obrigando a empresa a paralisar estações de tratamento com mais frequência para a lavagem de filtros”, afirmou a companhia, no dia 29 de janeiro, em meio a um dos tantos episódios de torneiras secas por dias seguidos que têm acometido os moradores.
“Com as chuvas fortes cada vez mais frequentes por causa das mudanças climáticas e sem as florestas que protegem rios, córregos e lagos, os sedimentos se movem com velocidade e chegam ao leito, aumentando a turbidez (lama) na água”, acrescentou, novamente apontando a raiz ambiental do problema, com ênfase na crise climática.
Mas os investimentos públicos, afirma, não têm sido feitos para combater a raiz do problema. “A Cesan tem investido continuamente na melhoria tecnológica das estações para conseguir tratar a água captada em mananciais que se degradam a cada dia, principalmente devido à ocupação irregular do solo e ao desmatamento ilegal em áreas de preservação permanente às margens dos rios e no entorno de nascentes. Dentre as grandes obras realizadas está a de expansão da Estação de Tratamento de Água (ETA V), localizada em Carapina, que recebe investimentos de R$ 61,5 milhões. Em 2023, a empresa fez o maior investimento da sua história, superando a marca de R$ 840 milhões na expansão e melhoria dos serviços”.
Para atender ao público atual de mais de 2,5 milhões de pessoas, a Cesan informa produzir anualmente mais de 270 bilhões de litros de água. O saneamento, por sua vez, chega a 1,8 milhão de habitantes, para os quais a empresa “coleta, trata e devolve limpo ao ambiente 65 bilhões de litros de esgoto ao ano”.
Já o orçamento estadual para reflorestamento da Mata Atlântica é concentrado basicamente nos editais do Programa Reflorestar, que é gerido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama), com recursos vindos principalmente do Fundo Estadual de Recursos Hídricos e Florestais do Espírito Santo (Fundágua).
No último Dia Mundial da Água, em março do ano passado, o anúncio foi de 1,4 mil hectares previstos de serem alcançados, em áreas particulares de 700 produtores rurais. O número é um pouco menor do que o resultado de 2019, que atingiu 1,6 mil hectares, 60% deles recuperados com Sistemas Agroflorestais (SAFs) e aproximadamente 10% com sistemas agrofilvopastoris.
Entre 2013 e 2019, o programa reflorestou 10 mil hectares e protegeu outros 10 mil por meio de Pagamento por Serviços Ambientais (PSAs) aos proprietários dos remanescentes florestais. Um investimento total de R$ 52 milhões, conforme o governo do Estado anunciou no Dia Mundial da Árvore de 2020, sendo R$ 17,6 milhões apenas em 2019.
Ou seja, o volume de R$ 52 milhões de recursos aplicados durante sete anos no principal programa de reflorestamento e proteção de florestas em pé do Estado – que é considerado o mais arrojado do país – foi menor do que o gasto de R$ 61,5 milhões, necessário para que uma ETA consiga tratar a maior turbidez com que a água chega na estação, devido à acentuada degradação dos rios. É uma matemática realmente difícil de entender, pois contraria qualquer visão de gestão preventiva e de bom uso do recurso público e, obviamente, as leis da natureza.
Enquanto isso, uma olhada nos planos de bacias hidrográficas dos rios Santa Maria da Vitória e do Jucu, que abastecem a Grande Vitória, não apontam uma única meta numérica de reflorestamento. O que é chamado de “meta” no tópico “Gestão da oferta hídrica” aborda uma intenção genérica de “proteção e recuperação de áreas estratégicas para a disponibilidade hídrica”, que visa “implementar medidas de proteção e recuperação de áreas estratégicas para o aumento da disponibilidade hídrica na bacia, como nas nascentes, em matas ciliares e em áreas de recargas” e que tem como “responsáveis” o próprio Comitê de Bacia Hidrográfica, a Agência Estadual de Recursos Hídricos (Agerh), a Seama e o Programa Reflorestar, o “Serviço Especializado” e produtores rurais.
Deserto verde cresce com apoio histórico do Estado
Numa contramão frontal – e letal não só para a verdadeira segurança hídrica, mas também para a proteção dos solos férteis e da biodiversidade, para a saúde do clima e para a qualidade de vida da população do campo -, com a necessária priorização da restauração ambiental, os investimentos públicos históricos em projetos de degradação socioambiental continuam com cifras muito acima dos parcos orçamentos que dialogam com reflorestamento.
Somente em junho de 2022, por exemplo, a isenção fiscal concedida para a Suzano foi de R$ 600 milhões, dinheiro que ela anunciou querer investir em ampliação dos monocultivos de eucalipto e na construção de uma fábrica de papel tissue – para papel higiênico e similares – com geração de apenas 200 empregos fixos, entre diretos e indiretos.
A área de expansão dos monocultivos, conhecidos como “desertos verdes”, não foi divulgado na época. O que se sabe, segundo dados do programa Reflorestar, quando da publicação do Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, em 2018, é que a eucaliptocultura foi o uso do solo que mais cresceu no Estado entre 2007 e 2015, período analisado pelo estudo. Foram 45 mil hectares a mais de deserto verde naqueles oito anos.
Em 2020, durante o mesmo anúncio dos números do Reflorestar, feito no Dia Mundial da Árvore, o governo anunciou que o imageamento da segunda edição do Atlas estava concluído e a publicação seria lançada em breve. Perguntada sobre quando o volume 2 estaria disponível, a Seama não respondeu a Século Diário.
O mais grave é saber que a expansão do deserto verde prossegue, conforme o próprio gerente do Reflorestar, Marcos Sossai, avaliou, em 2022, em reportagem ao jornal ((o))eco. Perguntado sobre o que o imageamento apontava para uma possível segunda edição, disse que as tendências se mantinham, ou seja: crescimento do eucalipto e do café, redução das pastagens e estabilização dos percentuais de áreas de mata nativa.
Lembrando, no entanto, que apesar do percentual se manter, as florestas maduras têm sido sistematicamente substituídas por matas jovens e de menor biodiversidade e capacidade de produção de serviços florestais mais complexos de robustos, como estudos recentes têm comprovado. Um exemplo é o artigo Hidden destruction of older forests threatens Brazil’s Atlantic Forest and challenges restoration programs (Destruição oculta de florestas mais antigas ameaça a Mata Atlântica do Brasil e desafia programas de restauração, em tradução livre), publicado em janeiro de 2021 na renomada revista Science Advances, com autoria de um grupo de especialistas brasileiros liderados por Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas – Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil, cujos dados, públicos e fundamentados no monitoramento feito pela ONG Fundação SOS Mata Atlântica subsidiaram o estudo sobre a redução das florestas maduras.
“Apesar dessa dinâmica de perda e ganho de florestas nativas ter mantido a quantidade de floresta praticamente estável nos últimos 20 anos, esse rejuvenescimento das florestas pode ser extremamente danoso para a conservação do bioma”, disse a Século Diário na época.
Ciência comprova denúncia das comunidades tradicionais
Também da Ciência vem a expectativa de que parte das mentiras que permitem a manutenção do apoio governamental à expansão do deserto comece a desabar. Em novembro de 2022, um estudo da Universidade de São Paulo (USP) desmontou a guerra narrativa que a indústria papeleira insiste em travar contra populações tradicionais de quilombolas, indígenas e camponeses, que historicamente denunciam o excessivo consumo de água dos monocultivos de eucalipto.
“A maioria dos clones de eucalipto em uso hoje no Brasil é ótima para crescimento rápido, desde que haja disponibilidade de água suficiente. Em eventos de seca severa, cada vez mais frequentes com as mudanças do clima, os eucaliptos e outras espécies comerciais podem secar e morrer, bem como reduzir a oferta de água para as pessoas. Por isso é preciso buscar meios de tornar as plantações florestais mais resilientes à seca e econômicas no uso da água”, acrescentou.
Pasto rende mais que PSA
Outro agravante desse contrassenso letal dos investimentos públicos que deveriam garantir a verdadeira segurança hídrica, que é aquela que se baseia em medidas de proteção da biodiversidade e das populações tradicionais, é saber que o valor pago pelo Reflorestar em PSA até 2019, era menor do que a renda média obtida por um produtor rural com pasto!
É o que consta no relatório “Infraestrutura Natural para Água na Região Metropolitana da Grande Vitória”, publicado em agosto de 2021. “Hoje, o Programa Reflorestar paga entre R$ 267 e R$ 281 por hectare por ano em forma de PSA. No entanto, a partir de entrevistas locais, estimou-se que um proprietário de terras poderia ter uma renda equivalente a R$ 420 por hectare por ano se mantivesse a atividade pecuária. O estudo mostrou que mesmo que os valores pagos pelo Programa Reflorestar fossem aumentados para refletir o custo de oportunidade da pecuária, o investimento em infraestrutura natural se manteria viável e economicamente promissor”.
Sem respostas
Século Diário demandou a Seama e a Cesan sobre essas contradições, incluindo qual é a estimativa do investimento nas usinas de dessalinização, qual o orçamento do Reflorestar previsto para este ano, qual a previsão de publicação da segunda edição do Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo e por que a Cesan não inclui metas de reflorestamento em sua carteira de projetos. Ambas instituições confirmaram o recebimento das demandas, mas não responderam a nenhuma pergunta.