Para Guilherme de Castro, Repactuação e decisão de R$ 47 bilhões da Vara Federal são menos favoráveis aos municípios
O processo movido contra a BHP Billiton e a Vale na Justiça britânica, em nome de mais de 700 mil vítimas do crime da Samarco/Vale-BHP de novembro de 2015, parece ser o caminho mais promissor, em relação a prazo e valores para compensação e reparação, entre os três hoje em curso. A avaliação é do procurador-geral-adjunto de Colatina, Guilherme de Castro, integrante da comitiva capixaba que segue para Londres para acompanhar as audiências preparatórias ao julgamento na corte inglesa, que acontecem nos dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro.
“Com o avanço da Ação de Londres, a expectativa de um acordo é cada vez maior”, afirma, referindo-se ao acordo que corre em paralelo ao processo judicial. O julgamento está marcado para outubro e o valor global da ação está em aproximadamente R$ 230 bilhões. O acordo visa antecipar a resolução do caso, de forma extrajudicial, mediante um deságio que está sendo discutido entre o escritório Pogust Goodhead e as vítimas que ele representa no processo.
Os mais de 700 mil autores são organizados em quatro grupos: indivíduos; Municípios; empresas; e instituições religiosas e autarquias, cujos percentuais sobre o valor total da ação correspondem respectivamente, a 66%, 23%, 10% e 1%. Cada grupo discute seu deságio, ou seja, o desconto maior que pode conceder para o fechamento de um acordo antes da conclusão do julgamento.
A transparência com que a ação de Londres tem sido conduzida é outra característica que lhe atribui maior potencial de sucesso, quando considerado o atendimento às necessidades das vítimas do desastre, pontua o procurador-geral-adjunto. “Temos como iniciativa principal aqui em Colatina a Ação de Londres. É um compromisso do prefeito Guerino [Balestrassi (MDB)] em dar todo o apoio necessário para esse processo. Não só pelo valor, mas por ser muito mais transparente, permitindo que os prefeitos, líderes comunitários, todos participem de fato das negociações e reuniões”, explica Guilherme de Castro.
As reuniões entre os grupos de autores e o escritório são periódicas, a cada dois ou três meses, quando todos são atualizados sobre a tramitação do processo e as negociações com as empresas. Para as audiências da próxima semana, os representantes de cada grupo de atingidos também se reúnem com o escritório, onde a estratégia de atuação na corte é apresentada. Quem não for a Londres, participa remotamente.
Conforme explica o Pogust Goodhead, as sessões ocorrerão na Corte de Tecnologia e Construção e irão discutir a condução do processo, ou seja, o que será apresentado no julgamento de outubro, na Corte da Inglaterra e País de Gales, bem como o planejamento das próximas sessões e o cronograma. As audiências estão a cargo da juíza Finola O’Farrell DBE e são denominadas “Case Management Conference” (CMC) ou Audiência para Gerenciamento do Caso. Está prevista a participação de representantes das duas mineradoras, assim como de vítimas, representadas pelo escritório.
Repactuação
Na Repactuação, que tem por base o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado em 2016 entre as mineradoras, a União, os governos do Espírito Santo e Minas Gerais, autarquias ambientais instituições de justiça, a dinâmica e os valores negociados são bem diferentes, expõe o procurador.
“Na Repactuação, os municípios sequer são ouvidos pelo desembargador, ou aceitos pela ação. O CORIDoce [Consórcio Público de Defesa e Revitalização do Rio Doce] lançou uma petição, solicitando que uma comissão de prefeitos pudesse fazer das reuniões. A petição sequer foi aceita”, compara. “Os Municípios só conseguem acesso às informações por meio dos deputados federais. Colatina tem quatro deputados federais, o que facilita. Victor Linhalis, do Podemos, principalmente, nos atualiza bastante, mas como prefeitura não somos chamados e nem sequer ouvidos.
Em relação aos recursos, mais desvantagens: ao invés de 23%, somente 11% do valor total da Repactuação está destinada aos municípios, e a forma de utilização é considerada engessada. “Se a Repactuação sair, os municípios não terão a mesma autonomia que os estados e a União. Para municípios, a verba é muito direcionada, precisa apresentar projetos e captar os recursos. E teremos pouco tempo para aderir ou não ao acordo. Há uma minuta que define o prazo de 120 dias para decidir. E não se sabe ainda o que vai acontecer com algum município que não aderir”.
Para um município que ainda gasta muito com o tratamento da água captada no Rio Doce para abastecer toda a sua população, de 120 mil pessoas, além dos investimentos em urbanização de novas áreas para abrigar pessoas que precisam ser reassentadas, é preciso buscar soluções que sejam as mais favoráveis possível. “Nós temos uma população aguardando reassentamento, ainda em aluguel social. O remanejamento de um bairro para outro gera necessidade de fazer escola, posto de saúde, abrir novas frentes de urbanização”, pontua.
Justiça Federal
Na ação civil pública impetrada pelos ministérios e defensorias públicas na Justiça Federal, as desvantagens para os municípios se mantêm, afirma o procurador de Colatina. Ela também incide sobre o TTAC, como a Repactuação, porém, de forma judicial.
Houve uma primeira, impetrada em 2016 com o valor de R$ 155 bilhões, que foi paralisada em decorrência de acordos extrajudiciais que a própria Vara Federal de Belo Horizonte (na época a 12ª, hoje 4ª) intermediou, entre os MPs e DPs, as mineradoras e a Fundação Renova. O principal desses acordos foi o Termo de Ajustamento de Conduta da Governança (TAC-Gov), homologado em 2018. No entanto, como todos os acordos foram descumpridos sistematicamente pela Renova, as instituições de justiça impetraram uma nova ACP, em 2019, com o valor atualizado de R$ 200 bilhões.
O problema aqui, avalia o procurador de Colatina, é o próprio funcionamento da Justiça brasileira, que admite muitos recursos, que a tornam demasiado morosa e, por vezes, injusta. “A Legislação brasileira é muito mais rica em instâncias de recurso. Estamos na primeira instância, podendo ter segunda, terceira, extraordinárias e, no meio disso, vários recursos”, expõe. Além disso, como ela incide sobre o TTAC, mesmo que haja uma decisão final antes de Londres, as condições estabelecidas no Termo de 2016 são menos favoráveis aos municípios que na ação britânica.
Uma decisão em primeira instância que animou os atingidos foi tomada nesta quinta-feira (25) pelo atual juiz substituto responsável pelo caso, Vinícius Cobucci, que definiu o valor de R$ 47,6 bilhões a serem pagos pelas mineradoras. Na sentença, ele acata um dos três pedidos feitos pelos MPs e DPs, relativo aos danos morais coletivos. Obviamente, é esperado que as empresas recorram. “Não temos expectativa de que essa sentença de fato signifique o recebimento, o pagamento desses valores”, lamenta Guilherme de Castro.
Advocacia predatória
A excessiva utilização de recursos que prolonga o julgamento do caso é criticada pelo próprio juiz, ao apontar os argumentos utilizados pelas mineradoras e, antes, até, o próprio TTAC, que, em sua cláusula 256, estabelece que “As sociedades empresárias [Samarco, Vale e BHP Billiton] não reconhecem juridicamente a responsabilidade pelo ‘evento’, isto é o rompimento da barragem. O simples fato de não reconhecerem a responsabilidade pelo dano causado já implica ofensa à coletividade”, sublinha o magistrado.
Ele prossegue, afirmando que “o reconhecimento da responsabilidade é uma forma de reparação da violação de direitos humanos (…) [e] Se as partes rés tivessem reconhecido a responsabilidade pelo dano causado, este reconhecimento poderia ser interpretado como uma medida reparatória da violação de direitos humanos. Ao contrário, o TTAC se furtou ao reconhecimento de qualquer responsabilidade, o que denota a ausência de qualquer compromisso ou aparente interesse na reparação pelo dano moral coletivo”, afirma.
Vinícius Cobucci também ressalta “o nexo causal” entre os danos morais coletivos listados na ACP e o rompimento da barragem, atacando outra tentativa reiterada das empresas e a Renova, que negam inclusive os nexos causais entre a contaminação acentuada da água e dos alimentos produzidos na Bacia do Rio Doce e o desastre, ao contrário do que confirmou a perita judicial Aecom do Brasil, em relatório divulgado com exclusividade em Século Diário. “O dano moral coletivo ocorreu. Trata-se de fato incontroverso. Presente o nexo causal, pois o rompimento da barragem levou à violação de direitos fundamentais. Há necessidade de se arbitrar a indenização cabível”, afirma o magistrado.
“O rompimento da barragem gerou consequências socioeconômicas com impactos na coletividade por muitos anos. O impacto não se restringe às pessoas que moravam nas localidades atingidas. Gerações futuras serão afetadas. As comunidades foram impactadas em sua moradia, trabalho e relações pessoais. Pessoas foram mortas em razão do rompimento. Houve a degradação ambiental, com destruição da flora e fauna, o que inclui o sofrimento de animais. Houve perda da qualidade de vida. O rompimento gerou efeitos no ecossistema, com interferências negativas em várias cadeias produtivas e processos ecológicos. Enfim, são vários os danos, os quais devem ser devidamente reparados ou compensados em termos materiais, seja por meio de programas do TTAC ou outras providências”, explana.
No entanto, prossegue, “as consequências são mais severas e vão além de termos econômicos ou patrimoniais, como colocam as sociedades em suas contestações e manifestações ao reduzir, de modo infeliz, as discussões a questões de direito privado”.
Segurança jurídica
A argumentação é reforçada pela citação do trecho de uma fala feita pelo Procurador da República Felipe Augusto de Barros Carvalho Pinto em uma audiência realizada no dia 23 de janeiro de 2023. “A visão míope das sociedades empresárias – e da Fundação Renova – ao insistir numa pretensa igualdade jurídica, típica de relações privadas, pode criar vulnerabilidades e nulidades, o que afasta o ideal de segurança jurídica. Não se pode atribuir, portanto, ao judiciário brasileiro ou à lei processual brasileira todas as deficiências do processo de reparação. As sociedades empresárias contribuíram para este estado, na medida em que insistem nesta abordagem. É preciso que as sociedades empresárias façam uma autocrítica em relação ao seu posicionamento, já que a adoção de tal postura contribui de modo negativo para a segurança jurídica”.
Lucro de meio trilhão
A sentença de Vinícius Cobucci lembra ainda que, ao todo, foram atingidos, de forma direta ou indireta, 49 municípios, cuja extensão territorial somada perfaz a área total de 32,8 mil km², com um contingente populacional de 2,44 milhões de pessoas.
A importância da indenização por dano moral também é bem explicitada na sentença. “Ao contrário do alegado pelas sociedades empresárias, o STJ [Supremo Tribunal de Justiça] entende que há finalidade punitiva e pedagógica indenização pelo dano moral”, acentua, acrescentando que “no caso concreto, não se trata de mera função pedagógica ou punitiva. A indenização pelo dano moral coletivo deve ser ter como propósito atuar como garantia de não repetição. A ausência de resposta jurídica adequada, no momento oportuno, possivelmente contribuiu para o rompimento da barragem em Brumadinho em 2019. Em dezembro de 2023, Minas Gerais possuía três barragens com risco de ruptura”.
Para arbitrar o valor de indenização para os danos morais coletivos que acolheu, mediante os pedidos formulados na ACP pelos ministério e defensorias públicas, ele usa como parâmetros o lucro líquido da BHP e Vale, “próximo a R$ 500 bilhões, com R$ 355 bilhões de dividendos distribuídos nos últimos três anos, o que equivale a R$ 98 bilhões”.
Outra referência é o valor divulgado pelas empresas dos gastos já efetuados em ações de reparação e compensação dos danos materiais: R$ 47,6 bilhões. Se os lucros das mineradoras comprovam a saúde financeira das mesmas para arcar com o pagamento dos danos decorrentes do crime que cometeram, o valor já gasto com danos materiais surge como um montante que deve ser pago, também, pelos danos morais coletivos, visto que o TTAC, até o momento, não inclui essa questão em seus programas, considerando que as empresas, conforma a cláusula 256, não reconhecem suas responsabilidades nesse aspecto.
“Trata-se de valor incontroverso, já que reconhecido pelas próprias sociedades. Ainda que o dano material não tenha sido completamente aferido no caso concreto, já que existem inúmeras iniciativas de reparação e compensação em andamento, é razoável aplicar o entendimento do STJ e TRF4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região, inicialmente responsável pelo caso, em segunda instância], no sentido equiparar a indenização do dano material e dano moral coletivo”.
Direitos humanos
Em resumo, conclui o magistrado, o dano moral coletivo, aceito em sua sentença, gerou a condenação das empresas BHP, Vale e Samarco ao pagamento de indenização, “em razão da violação de direitos humanos das comunidades atingidas”, no valor de R$ 47,6 bilhões, “a ser corrigido e com juros desde 05 de novembro de 2015”, e que será destinado “a um fundo previsto por lei e administrado pelo governo federal (…) [para] ser empregada em projetos e iniciativas, conforme regulamento do fundo (…) exclusivamente nas áreas impactadas”.
Litoral norte
São três grupos de áreas atingidas, define o juiz: aquelas já previstas no TTAC; as que foram acrescidas pela Deliberação nº 58 do Comitê Interfederativo (CIF), que inclui comunidades costeiras dos municípios de São Mateus, Conceição da Barra, Aracruz e Serra que ainda não foram reconhecidas pela Fundação Renova nem contempladas pelos programas de compensação e reparação em execução, e que foi recentemente contestada pelo desembargador Ricardo Rabelo, o mesmo que conduz a Repactuação; além de “casos específicos em que houve decisão judicial com o reconhecimento de uma localidade”.