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Água, alimento, trabalho e dignidade ainda não chegaram aos atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP

Dignidade. A lama que transbordou – e ainda escorre – após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, no dia cinco de novembro de 2015, destruiu vidas, casas, comunidades inteiras, um rio praticamente por inteiro, centenas de quilômetros de litoral e manguezais, destruiu, também, a dignidade de milhares de pessoas, tirou-lhe a identidade e a perspectiva de futuro.

Mesmo privados, há longos dois anos, das necessidades mais elementares, como água, trabalho e comida, os atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP pedem, sim, por ajuda, por doações de alimentos e água, por médicos e remédios, mas suplicam, igualmente, por dignidade.

“Não quero cesta básica, quero minha dignidade, quero minha identidade de pescadora de volta!”, clama a pescadora Creuza Campelo da Silva, nascida e criada na comunidade de Campo Grande, em São Mateus.

“Olha só o que ela deixou, só destruição. Pelo amor de Deus, socorro, socorro! Porque a gente não aguenta mais viver essa vida, algumas vezes tem uma cesta básica. E quando a gente fica passando fome! Olha como tá os nossos manguezais acabou, acabou”, lamenta a pescadora.

Apenas há poucas semanas, Dona Creuza recebeu a visita da empresa contratada pela Fundação Renova para fazer o cadastro dos atingidos em São Mateus. A criação da Renova, pelas empresas responsáveis pelo crime – Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billinton – foi um dos primeiros desdobramentos do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado entre as empresas, a União e os governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, em fevereiro de 2016, quando a lama se restringia, no mar, a uma região bem menor que a atual, ainda numa área mais próximo à Foz do rio Doce.

Levar, finalmente, a Renova até as comunidades costeiras de São Mateus foi o resultado de uma longa e dura batalha, que consumiu o tempo e os esforços – já sabidamente tão escassos para as demandas cotidianas – da Defensoria Pública Estadual (DPES) e do Ministério Público Federal (MPF), além de vários coletivos de defesa dos direitos dos atingidos.

Tamanho esforço foi apenas para conseguir aprovar o óbvio junto ao Comitê Interfederativo (CIF), instância criada também no âmbito do TTAC: que a lama atingiu mortalmente os manguezais e o mar de todo o litoral norte capixaba, estendendo-se com densidade e letalidade um pouco menor, até o Parque Nacional Marinho de Abrolhos, no sul da Bahia, e, ao sul, até a cidade do Rio de Janeiro.

“Está tudo contaminado”

Estudos comprovando a abrangência da dispersão da lama e de sua toxidade já são publicados desde o primeiro trimestre de 2016 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e universidades brasileiras diversas – especialmente as federais do Espírito Santo (Ufes) e do Rio Grande (Furg) e a Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
 
Mesmo assim, não conseguiram ser usados em benefício de todos os atingidos diretamente (comunidades costeiras entre Aracruz e Conceição da Barra) nem em proteção da população atingida por meio do consumo dos pescados oriundos da região contaminada, que, pasmem, continuam sendo comercializados nos centros urbanos e consumidos pela população na Capital e outras cidades capixabas.
 
“Está tudo contaminado”, alerta Álvaro Martins da Silva, presidente Colônia Pesca Z-5 Praia do Suá. Alvinho, como é conhecido, contabiliza em cerca de 80% o contingente de barcos de camarão de Vitória que pescam na Foz e no rio Doce. Nenhum deles, porém, salienta, foi cadastrado nos programas de auxílio emergencial e indenização da Fundação Renova.
 
Alvinho explica que hoje, devido à contaminação do mar pela lama de rejeitos da mineradora, os barcos pequenos e grandes só podem pescar a uma profundidade superior a 20 metros, o que configura uma distância medida de três milhas da costa. Mas o camarão, explica, se movimenta em várias profundidades, por isso, o animal pescado a 20 metros passou pelas profundidades menores e se contaminou.
 
A última expedição realizada sob coordenação do professor Adalto Bianchini, da Furg, realizada de 23 a 28 de setembro último, confirma o que diz o presidente da Colônia Z-5. O último relatório de sua equipe afirma que foram verificados aumentos significativo – em relação aos dados da primeira expedição, realizada em janeiro de 2016 – nas concentrações de cádmio (Cd) e cromo (Cr), tanto nos camarões, quanto nos peixes, e de cobre (Cu), ferro (Fe) e manganês (Mn) nas amostras de músculos dos camarões.
 
Após uma acentuada redução dos níveis de metais nas amostras coletadas na segunda e terceira expedições, esse aumento da contaminação, verificado dois anos após o crime, evidencia “a importante influência dos eventos meteorológicos associados a este período do ano na região estudada”, enfatizam os pesquisadores.
 
“Neste caso, destaca-se a não conformidade da maioria das amostras de peixes ao limite máximo permitido pela atual legislação no que diz respeito à contaminação do músculo de peixe por cádmio (Cd)”, alertam.
 

Pescadoras viram lavadeiras de roupas

Diferentemente da lama que destruiu tudo pelo caminho, de Mariana/MG, até Regência-Linhares/ES, em duas semanas, o devido cadastro dos atingidos pelo maior crime ambiental do Brasil e o maior do mundo no universo da mineração, tropeça, de forma cruel, ao longo desses dois anos.

Dona Creuza é um exemplo disso. Feita a primeira entrevista, consta em seu questionário que a coleta de caranguejo que ela faz desde criança no manguezal de Campo Grande, em São Mateus, é para consumo próprio e não profissão, fonte de renda, alicerce de sua identidade e dignidade.

Sua colega de trabalho e luta, Eliane Balke, liderança entre da pesca artesanal na região, após três cansativas e infrutíferas entrevistas para cadastramento na Renova, foi classificada lavadeira de roupas. “Nada contra a profissão de lavadeira, mas eu não sou lavadeira, sou pescadora”, reclama a pescadora, que ainda não recebeu um único centavo da Renova e já despejada de sua casa, sobrevivendo de “bicos” e doações de cestas básicas pelas igrejas e outras entidades filantrópicas.

Esses e outros disparates, bem como os problemas de saúde que aumentaram absurdamente nos últimos danos, a necessidade de análises, estudos, assistência à saúde física e psicológica – multiplicaram-se os casos de depressão, alcoolismo, uso de drogas e transtornos mentais diversos – foram devidamente relatados, conta Eliane, em um documento protocolado em diversos órgãos em Brasília na última semana de outubro.

Ministério da Saúde, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Ministério Público Federal (MPF) foram alguns deles, que receberam pessoalmente a visita dela e de outras lideranças da pesca artesanal atingida pela lama.

Junto com o levantamento, requerimentos específicos a cada um dos órgãos. A iniciativa foi da Comissão Pastoral da Pesca (CPP), ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Balcão de negócios

Vindo de empresas que se dizem referência em responsabilidade social e ambiental e detentoras das mais modernas tecnologias, a falta de capacidade de realizar o cadastro correto dos atingidos, tarefa relativamente simples diante dos desafios tecnológicos vencidos pelas mineradoras, deixa evidente a intencionalidade nesse fracasso monumental.
 
“O cartão virou um balcão de negócios”, afirma o procurador da República em Linhares, Paulo Henrique Camargos Trazzi, referindo-se ao cartão de auxílio emergencial distribuído pela Fundação Renova.
 
Em palestra feita durante uma apresentação da Renova para a comunidade de Regência, o procurador explicou que a manipulação escusa do cartão e do cadastro dos atingidos está sendo utilizado, pelas empresas criminosas, como uma aplicação prática e cruel da máxima “Dividir para conquistar”, milenar estratégia de guerra utilizada desde os impérios da Antiguidade até os dias de hoje, por políticos, nações beligerantes e todas as grandes empresas, ao se relacionarem com os impactados por seus crimes ou atividades social e ambientalmente degradantes.
 
“Nosso entendimento é que nenhuma pessoa de fora, que não vivencia a vida nas comunidades, pode afirmar quem é atingido e como as pessoas sofreram. É preciso dar voz a essas pessoas”, acentua o procurador, referindo-se à falta de legitimidade da forma como a Renova tem feito a distribuição dos cartões, tem proposto as indenizações por danos morais, danos materiais e lucro cessante e todas as demais ações voltadas aos atingidos.
 
O entendimento é compartilhado pela Defensoria Pública do Espírito Santo (DP-ES): “Dois anos após o rompimento da barragem de Fundão, diversas violações de direitos são presenciadas em seus mais diversos aspectos, que perpassam não só o reconhecimento de comunidades, classes e indivíduos como atingidos, a sua participação efetiva nos processos de reparação e compensação, na falta de acesso à informação, além da segurança jurídica e transparência no programa de indenização”, afirma a defensora Mariana Sobral, do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam/DPES).
 
Mariana conta que, durante o trabalho pela DPES, ficou evidente que diversos reflexos socioambientais do desastre estão sendo suportados pelos municípios atingidos. Custos que deveriam ser arcados pelas empresas? “Sim, com certeza. E o poder público não pode ficar refém, tem que se organizar para cobrar”, posiciona.
 
A pressão sobre os aparelhos públicos de saúde dos municípios é talvez o maior exemplo dos reflexos aos quais se refere a defensora. E consta no documento encaminhado pela CPP aos órgãos federais, em Brasília.
 

Ruptura da coesão social

“As unidades de saúde não estão preparadas para tal situação e têm atendido inadequadamente ou não tem profissionais suficientes para o atendimento”, lê a pescadora Eliane Balke, em um dos trechos do requerimento, onde são relatados alguns dos principais problemas de saúde que aumentaram sensivelmente após o crime da Samarco/Vale-BHP: surtos de febre amarela, dengue e zika, alergias de pele coceiras e feridas expostas, aumento do número de casos de depressão, perda de memória, problemas de sono, esquecimento, transtornos mentais e comportamentais, adoecimento psíquico, aumento da ingestão de remédios controlados e outros remédios, pessoas com alcoolismo e com ingestão de drogas, famílias que estão se separando, diarreia e dor de cabeça, queixas de dores articulares, nos ossos e câimbras, reações alérgicas (vômito) quando comem peixe, casos de pressão alta.

“Tem o desastre ambiental, mas tem também o desastre emocional”, desabafa Gleusiane dos Santos Carlos Correia, coordenadora da Confecção do Projeto Tamar e liderança da Igreja Católica em Regência, comunidade pesqueira onde a lama alcançou o mar.

“Muita confusão, muita disputa, muita desavença. Tá todo mundo desesperado”, relata o pescador Simião Barbosa dos Santos, presidente da Associação de Pescadores e Assemelhados de Povoação (APAP), outra comunidade costeira da Foz do Rio Doce, vizinha a Regência. “Houve uma ruptura da coesão social”, observa Joca Thomé, coordenador nacional do Centro Tamar/ICMbio e focalizador das ações do Instituto na região.

Nas comunidades onde os cadastros foram feitos de forma mais abrangente, e um grande volume de dinheiro passou a circular na forma dos cartões de auxilio, a ociosidade dos ex-pescadores e trabalhadores ligados ao turismo, fez aumentar o consumo de álcool e outras drogas. Nas comunidades onde o auxílio financeiro ainda não chegou, a esses efeitos, somam-se a fome, o endividamento e a desestabilização das famílias, como relatada pela catadora de caranguejo Creuza, e os demais problemas de saúde constantes no documento da CPP.

“Quando o rejeito chegou, atingiu todo mundo. O pescador de carteira profissional vivia daquilo e foi mais atingido. Mas os outros também foram. Tem que socorrer todo mundo”, reclama Simião. “O capital acabou com tudo!”, decreta Eliane Balke.

Essa sobreposição do capital sobre a vida também é criticada pelo bispo de Colatina, Dom Wladimir Lopes Dias. “O lucro foi colocado acima das pessoas”, afirma. “Dentro de uma visão mais espiritual, franciscana, vemos a falta de preservação da natureza, da Nossa Casa Comum”, observa, ao convidar a população para o III Manifesto em favor do Rio Doce, realizado em Colatina no último sábado (04), com apoio de mais de vinte entidades.

Esse é também o ponto de partida das análises feitas pela Declaração dos Bispos das Dioceses da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, divulgada neste domingo (05), ao final de um Seminário realizado em Mariana/MG sobre o crime.

“Há princípios éticos que estão sendo feridos especialmente pela irresponsabilidade, negligência e omissão por parte de empresas e de instituições governamentais. Prova disso é a assinatura de acordos referentes a reparação, compensação e indenização dos danos; a reduzida participação das comunidades atingidas nas decisões que lhes dizem respeito; e a falta da devida avaliação sistêmica e estratégica dos impactos provocados”, afirma a Declaração, assinada por dez bispos e arcebispos do Espírito Santo e Minas Gerais.

“Na raiz dessa tragédia de dimensões incalculáveis, encontra-se a sede desenfreada de lucro a ser obtido a qualquer preço, mesmo causando danos à natureza e ao ser humano”, prossegue o manifesto, citando ainda palavras do Papa Francisco: “Isto acontece porque no centro desse sistema econômico está o deus dinheiro e não a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico deve estar a pessoa, imagem de Deus […]. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro dá-se essa inversão de valores”.

O documento cita ainda outros casos de rompimentos de barragens de contenção de resíduos de minérios ocorridos em Minas Gerais: Itabirito (1986), São Sebastião das Águas Claras (2001), Miraí (2007), Itabirito (2014) e Mariana (2015), dos quais, “a dívida contraída pelas empresas responsáveis ainda não foi plenamente saldada e a atuação dos órgãos públicos não é satisfatória”, analisam os bispos e arcebispos.

Mobilização social

No livro “A Questão Mineral no Brasil Vol. 2 – Antes Fosse Mais Leve a Carga – Reflexões sobre o desastre da Samarco/Vale-BHP Billinton”, os organizadores Marcio Zonta e Charles Trocate, afirmam que, “caso fosse dividido, cada brasileiro, receberia do trio Samarco/Vale/BHP Billiton, responsável pela tragédia, aproximadamente 450 quilos de rejeitos da mineração, que ficaram apenas nas costas da população de Bento Rodrigues e várias comunidades e cidades entre Minas Gerais e Espirito Santo que viraram, da noite para o dia, uma extensão do complexo minerador de Mariana”.

Para além dos que se sujaram literalmente com a lama de rejeitos, um universo muito maior de pessoas se viu impactada pelo crime, lembram os autores. “Parte da população brasileira viveu e a outra viu pela primeira vez os efeitos da indústria da mineração para além dos lacônicos bordões ‘superávit primário’ ou ‘equilíbrio da balança comercial’, dizem, convocando mais um debate emergido do maior crime ambiental da história brasileira: a diversificação da economia nacional, ainda muito dependente da mineração, e o aprimoramento da legislação referente à atividade.

“Dada a captura dos poderes e dos órgãos públicos pelos agentes econômicos”, destacam os autores no primeiro capítulo do livro, “dificilmente soluções espontâneas para esses problemas surgirão de dentro do Estado. Dessa forma, a saída mais provável para essa encruzilhada parece ainda ser a organização e a mobilização social”, argumentam.  

“A reivindicação conjunta de trabalhadores e atingidos, a contestação coletiva e da criação de redes de solidariedade e de aprendizado, que envolvam também grupos não diretamente afetados, mas ainda assim sensibilizados pelo sofrimento alheio e pela destruição de formas de reprodução social diversas, seja possível reverter esse quadro e pensar uma nova forma de se relacionar com os bens comuns no país”, prenunciam.

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