“Está todo mundo sem chão”, conta Julio Cesar Velten, dono da área onde serão erguidos os muros da represa. Assim como ele, 90% dos proprietários, na mira da barragem, não aceitaram as ofertas de indenização, pois alegam que elas correspondem a menos de 15% do valor de mercado. “Com esse valor, não conseguimos comprar outras terras e nem levar nossas vidas de produtores rurais adiante”, lastima-se.
Ele conta que a negociação com o Estado começou há cerca de dois anos, quando os produtores foram informados de que não deveriam mais fazer nenhuma benfeitoria, pois as propriedades seriam fotografadas e medidas e nenhuma nova benfeitoria entraria na conta da perícia indenizatória.
Um ano depois, no Dia Mundial da Águas de 2017, o governador Paulo Hartung assinou o Decreto nº 461-S, tornando de utilidade pública as terras que serão alagadas pela barragem – 2.092.463,70 de m², em Domingos Martins e Viana –, sob o argumento de que a obra beneficiará um milhão de pessoas na Grande Vitória, com melhor garantia de abastecimento de água.
Segundo o Decreto, a Barragem do Rio Jucu – Braço Norte tem capacidade de 20 bilhões de litros de água, o que significa quatro meses de reservação. O investimento será R$ 108 milhões, e o início da obra previsto para setembro de 2018. “O reservatório terá 50 metros de altura, extensão de 300 metros e vai garantir o abastecimento de água em períodos de seca. O tempo estimado para a construção da represa é de dois anos após a conclusão da licitação para contratar as obras”, informa o texto legal.
'Invasores'
Julio e seus vizinhos sabem que, quando a Justiça decidir em favor da Cesan, eles receberão a visita de um oficial de Justiça, que lhes dará um prazo exíguo para, ou se defenderem judicialmente, ou abandonarem suas propriedades com um valor irrisório em mãos, sem condições de recomeçar a vida, sabe-se lá em que local.
O caso de Julio é exemplar. Sua propriedade tem 68 mil metros quadrados, com 540 metros de frente de rio. O valor ofertado pela Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan) é de R$ 94 mil, sendo que apenas 60% a 80% poderá ser sacado, o restante só ficando disponível ao final do processo na Justiça, que pode demorar décadas, como os indenizados pela Rodovia do Sol, que esperaram 20 anos pelo pagamento total.
Ele conta que há muitos agricultores que não sabem ler e escrever e não tem condições de contratar um advogado para se defender. “Uma avaliação judicial custa no mínimo R$ 5 mil reais e é por conta do proprietário. Um feirante, um agricultor familiar, pode disponibilizar desse dinheiro pra fazer uma perícia em dez dias? Constituir advogado, conseguir um perito e entregar a avaliação na mão do juiz pra reverter, nesse prazo, é quase impossível!”, assombra-se.
“Conversei com o perito contratado pela Cesan e ele confessou algumas informações. Há muitos erros nesses processos. A Justiça poderia anular todas as avaliações, mas infelizmente estamos num processo que o governador vai ser candidato e há muita pressão pra aprovar tudo com urgência”, denuncia.
Muito mais do que indenizações justas
Desesperados com a falta de perspectiva de como reivindicar indenizações justas, os produtores rurais do Córrego da Onça sequer sabem que sua luta é ainda maior. O alerta é do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que atua em todo o país há mais de 30 anos, defendendo as comunidades despejadas de suas casas em função de represas para abastecimento de água, produção de energia elétrica e mineração.
Esses e outros direitos constam na minuta da Política Nacional dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), sistematizado em 2007 pelo MAB, a Câmara dos Deputados e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF).
No caso da Represa Rio Jucu Braço Norte, os produtores têm o direito de serem reassentados em uma terra próxima do rio, da rodovia asfaltada e do mercado consumidor da Grande Vitória.
O valor das indenizações deve ser calculado a partir de uma matriz de danos a ser construída juntamente com os próprios atingidos. “Na matriz deve constar quanto vale cada pé de café, se for de primeira safra, de segunda ou que ainda não produziu … quantos animais, quantas frutíferas, tanques de peixe, estufas … tudo”, explica.
E a assistência técnica especializada é fundamental, para que os produtores possam, na nova terra, semelhante a original, produzir no mínimo em igual volume e rendimento que tinha antes do reassentamento. “Se não acontece como naqueles casos de reforma agrária, que o governo joga as pessoas no assentamento e diz um ‘“se vira’”, compara o militante do MAB.
A proposta da PNAB foi transformada em cartilha pelo MAB, para melhor difusão entre a sociedade e pressão sobre o legislativo federal para sua aprovação.
“Na história da luta dos atingidos e atingidas por barragens, garantimos conquistas, mas não conquistamos direitos. Nosso propósito é garantir, em lei, através da aprovação da Política Nacional dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) os direitos dos atingidos e atingidas por barragens, para servir de instrumento a nossa luta, e ser um parâmetro a ser seguido por qualquer empresa, na construção de qualquer barragem, em qualquer lugar do território nacional”, informa o Movimento, em sua página na internet.
Devido à urgência do assunto, alguns estados se anteciparam a Brasília. Heider conta que Rio Grande do Sul já aprovou a sua Política Estadual (PEAB), Minas Gerais está com tramitação já na Assembleia Legislativa, e Bahia já iniciou os trabalhos para redigir. O Espírito Santo ainda não começou a se movimentar nesse sentido.
Grandes represas não são solução
Um outro agravante no caso é a efetividade de uma grande represa como a Rio Jucu Braço Norte, para a solução da crise hídrica. O tema foi inclusive discutido no Fórum Mundial da Águas, reporta Eduardo Pignaton, presidente da Associação Barrense de Canoagem, em entrevista a este Século Diário por ocasião da 28ª Descida Ecológica do Rio Jucu, realizada no último dia 25 de março. “Grandes barragens matam os rios!”, indigna-se.
Um morro florestado absorve 60% da água da chuva, informa Dunga, enquanto um morro desmatado, com pasto, só 6%. “O programa emergencial do Espírito Santo deveria ser o de construir caixas secas”, reivindica.
Buracos feitos entre os barrancos e as estradas vicinais, as caixas secas podem armazenar a água da chuva, evitando que elas escoram dos morros desflorestando, aumentado a erosão do solo, provocando voçorocas nas estradas e inundações nas imediações, além de intensificar o assoreamento dos córregos e rios, fazendo perder toda a água que deveria ser reservada no lençol freático sob os solos com cobertura florestal.
Além de uma medida emergencial, as caixas secas também viabilizariam o trabalho, de médio e longo prazo, de reflorestamento das Áreas de Preservação Permanente (APPs), incluindo a mata ciliar. “Só se refloresta com água. Tem que fazer caixas secas na região serrana. E centenas de milhares de microbarragens, ao longo do rio”, indica, mencionando os “tabuleiros” da China.
“A água em grandes represas fica podre”, reclama, citando a represa do Rio Bonito, onde o tom verde-escuro característico denuncia a presença expressiva de bactéria poluentes, que mesmo após morrerem, com a aplicação de produtos pela Cesan, alerta o ambientalista, continuam a contaminar a água, com seus restos mortais.
“E quando tem muito particulado, as Estações de Tratamento de Água não dão conta de limpar”, diz. “Por isso que, de vez em quando, a Cesan precisa liberar o lodo do Rio Bonito, que cai todo na baía de Vitória”, conta.
Caso a represa do Rio Jucu realmente seja construída, Dunga prevê que a parte baixa do rio vai secar. “E vai ficar praticamente só esgoto!”. É preciso elaborar um plano de reserva hídrica para a Bacia do Rio Jucu, acentua. E isso se fará de forma eficiente com caixas secas, muitas microbarragens e nenhuma grande barragem.