Atingidos de Regência lutam por voz na repactuação do crime Samarco/Vale-BHP
“A água que consumimos está contaminada, não deveria ser usada nem para o banho; as crianças não têm mais condições de viver a nossa cultura, meu filho já tem nove anos e não conhece um peixe; e nós não temos informações sobre o que está acontecendo, isso é muito preocupante. Antes ao menos tínhamos alguma esperança de que as coisas melhorariam, mas agora a situação é bem pior do que no início”. O relato é do pescador Noel Rodrigues, um dos articuladores de um movimento da comunidade de Regência, em Linhares, norte do Estado, que se soma ao de outros atingidos excluídos do processo de repactuação do crime da Samarco/Vale-BHP.
Eles cobram a efetivação participação nas negociações que definem a compensação e reparação dos danos decorrentes do crime, quase nove anos depois, conduzidas apenas pela cúpula dos governos federal e do Espírito Santo e Minas Gerais.
Os moradores da vila de pescadores, alerta Noel, vivem inseguros em relação à garantia de sobrevivência e reparação dos impactos socioambientais provocados pelo crime, diante do processo de repactuação conduzido sob segredo de justiça, apesar da exigência de participação das comunidades afetadas estabelecida pela Lei Federal 14.755, de 2023, que instituiu a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens.
Essas questões foram reiteradas pela comunidade por meio de uma carta de denúncia e uma nota de repúdio, que apontam indignação em relação à exclusão das decisões sobre a repactuação, “entre as diversas violações de direitos humanos vivenciadas pelas populações atingidas pela barragem de minério”. Os documentos serão encaminhados a instituições como o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública do Estado (DPES).
O movimento de atingidos em Regência também realizou um ato simbólico recentemente, reunindo lideranças e moradores em uma na área do cais atingido pelos rejeitos da Samarco/Vale-BHP, para registrar a realidade dolorosa que o crime trouxe para a região e pedir a revisão urgente da matriz de danos da Renova decorrentes do rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG).
Organizações como a Associação dos Pescadores de Regência (Asper), Colônia de Pescadores Z6 Caboclo Bernardo de Linhares, Associação de Barra do Riacho (ASPEBR), Associação Ribeirinha de Povos Tradicionais da Foz do Rio Doce- Regência (comunidade de Entre Rios,) Associação de moradores, marisqueiros, Pescadores, Artesões do Balneário de Barra Nova Norte (AMPABAN), estre outras entidades da sociedade civil, assinam o manifesto.
Para os representantes das comunidades afetadas, o acordo de pagamento de R$ 109 bilhões pelas empresas Samarco, Vale e BHP, proposto pelo Governo do Estado para a repactuação, não recupera a extensão dos danos causados pelas mineradoras. Os atingidos têm cobrado sistematicamente por serem ouvidos durante as negociações que afetarão sua sobrevivência e apontado a negligência gerada pela falta de compromisso ambiental e social dessas empresas.
Violações
A carta de denúncia da comunidade ressalta que o Processo de Repactuação do Caso Rio Doce, previsto no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC-GOV) de 2018, é essencial para efetivar reparações. No entanto, mesmo com o objetivo definido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Fundação Renova, instituída após o rompimento da barragem de Fundão, descumpre a determinação da participação dos atingidos, transparência e acesso às informações sobre as negociações.
O documento também aponta que a exclusão e a falta de escuta da comunidade também implicam em violações à Constituição Federal, bem como em desrespeito às recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos e de outras jurisdições internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que assegura o direito à consulta prévia, livre e informada de comunidades tradicionais.
Após quase nove anos do crime socioambiental de responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, as comunidades afetadas ainda lutam por participação efetiva no processo de repactuação, transparência nas negociações e pelo cumprimento da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), que visa minimizar o sofrimento das vítimas e garantir sua dignidade.
Em muitos locais afetados, como Regência, aponta o texto, as comunidades são formadas por caboclos, ribeirinhos, indígenas, pescadores e camponeses, cuja vida está ligada ao meio ambiente. “A interrupção de práticas como pesca, agricultura, comércio e artesanato prejudica a identidade desses povos, impedindo que o conhecimento e as tradições ancestrais sejam transmitidos às futuras gerações”, enfatizam as comunidades.