Prefeitura voltou a comprar sementes da comunidade de Fortaleza e garantir o fubá crioulo orgânico nas escolas
Pense em sementes ancestrais, orgânicas, que garantem a autossuficiência dos agricultores (por não precisarem comprar novas sementes a cada safra) e sua independência em relação aos pacotes de venenos agrícolas e que, além disso, são, via de regra, mais nutritivas e produtivas que as variedades híbridas ou transgênicas. Agora pense numa onda de compartilhamento crescente dessas sementes (mágicas?), trazendo dignidade e saúde às famílias agricultoras e aos consumidores.
Dignidade e autonomia, é preciso ressaltar, combatidas incessantemente pelas grandes companhias multinacionais que são ao mesmo tempo fabricantes das sementes transgênicas, dos agrotóxicos aplicados sobre elas e dos remédios alopáticos que tratam as doenças geradas pelo envenenamento que esse ciclo biocida promove. Mas, apesar de todo um sistema capitalista contrário, a vida resiste.
A primeira parte dessa projeção mental existe desde os primórdios dos tempos: as sementes crioulas, de milho, feijão arroz … uma infinidade de alimentos que têm sido mantidos ou resgatados por comunidades tradicionais e camponesas de todo o mundo, inclusive no Espírito Santo.
A segunda parte também já é realidade, ainda que em nichos específicos, com seus altos e baixos, mas, segue firmando-se como uma desejável e necessária tendência mundial. E o município capixaba de Muqui, no sul do Espírito Santo, é uma das referências nesse movimento.
Há trinta anos
O resgate do milho crioulo de Muqui é uma experiência de sucesso que completa 30 anos neste 2023, com uma feliz notícia: a retomada, pela Prefeitura Municipal, do abastecimento de escolas e instituições sociais com o fubá crioulo e orgânico. A compra das sementes foi feita em setembro passado, após alguns anos de hiato dessa política pública, que durante muito tempo foi fundamental para apoiar os agricultores empenhados na produção crioula da comunidade de Fortaleza.
Foi adquirida 1,6 tonelada de sementes produzidas por oito agricultores, quantia que foi distribuída para associações e assentamentos rurais do município. Para cada quilo de semente recebida, os agricultores comprometeram-se em devolver dois quilos em grãos ao município, que então produziu o fubá que enriquece a alimentação do Abrigo de Idosos e de escolas do município.
José Arcanjo Nunes e Renato Bettero são dois dos atores que atuam desde o início desse trabalho com o milho crioulo de Muqui. O primeiro, engenheiro agrônomo, doutor em Produção Vegetal e hoje consultor da Prefeitura; o segundo, agricultor familiar e membro da Associação Pró-desenvolvimento Comunitário de Fortaleza e Adjacências.
Foi no ano de 1993 que Fortaleza implantou seu pioneiro campo comunitário de produção de sementes crioulas, por iniciativa de um grupo de jovens interessados no assunto e dois estudantes do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) que transformaram o desejo em uma pesquisa acadêmica. “A gente separava, plantava, colhia, selecionava … tudo em mutirão. E decidimos batizar a primeira variedade de milho com o nome de Fortaleza, em homenagem à nossa comunidade”, recorda Renato.
As ações ganharam importância em 2001, com a instalação do Ensaio Nacional de Milho Variedade, coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do Campo Comunitário de Melhoramento de Semente Crioula de Milho, em Fortaleza, pontua José Arcanjo.
“Os ensaios e campos de melhoramento foram realizados durante dez anos. Metodologias participativas foram utilizadas no decorrer dessas pesquisas, o que possibilitou aos agricultores e agricultoras empoderarem-se dos processos de produção de sementes”, conta o agrônomo.
Frutos desse trabalho foi a criação de três variedades de milho crioulo: Fortaleza, Aliança 1 e Aliança 2. A variedade Fortaleza está registrada no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e as outras duas variedades estão em processo de registro.
De 2000 a 2010, ressalta Renato, a prefeitura e a Embrapa prestaram grande apoio. “Fizemos vários cursos, vendemos muita semente pra Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]”. Depois, prossegue, as políticas públicas começaram a rarear. “O governo federal parou de comprar, o governo estadual parou de comprar, as prefeituras pararam de comprar. De 2012 em diante foi uma negação”, relata.
Um momento marcante foi o ano de 2005, quando a Prefeitura de Muqui fez a primeira compra, adquirindo 4,5 toneladas de sementes de dez produtores (variedades Fortaleza, Aliança 1, Aliança 2 e Sol da Manhã), com distribuição para associações comunitárias rurais e assentamentos da reforma agrária. Um investimento de R$24 mil. Em 2013, foi a vez da Conab, que comprou 15 toneladas de sementes e as distribuiu para comunidades quilombolas, comunidades indígenas, assentamentos e comunidades rurais de vários municípios do Estado.
Fora as compras governamentais, Renato conta que alguns agricultores também seguiram adquirindo o milho crioulo de Fortaleza para plantar para alimentação própria e produção de fubá. “Mas a maioria aqui ainda tem uma visão muito capitalista e planta mais é café e usa agrotóxico”, observa.
Nesse sentido, uma pesquisa foi iniciada em 2021 no Estado para identificar se há contaminação das sementes crioulas com variedades transgênicas. “O município tem a lei que proíbe plantar transgênicos, teve um seminário nacional para aprovar essa lei”, destaca Renato. A lei foi promulgada em 2012, dois anos após a criação do Monumento Natural Serra das Torres, abrangendo uma cadeia montanhosa que se estende entre os municípios de Muqui, Atílio Vivácqua e Mimoso do Sul. A lei que cria a unidade de conservação já prevê uma restrição ao plantio de transgênicos na região, vindo a lei municipal reforçar essa proteção.
Passados trinta anos desse trabalho exemplar, o experiente agricultor sente que o saldo da experiência é positivo, apesar das idas e vindas das políticas públicas, do arsenal contrário por parte do agronegócio globalizado e do trabalho artesanal que é exigido dos agricultores. “É manual. Tem que fazer tudo à mão, toda a seleção. Mas a semente transgênica ainda assim é mais cara, duas vezes o preço da nossa. A gente vende a quinze, vinte reais, e o produtor nunca mais precisa comprar semente para plantar”, compara.
Há ainda um “sabor” e um “nutriente” a mais que as sementes crioulas agregam, poetiza, que é a sinergia comunitária, o afeto e a alegria que envolvem todo o trabalho. “O mais interessante é que a gente fazia tudo em mutirão, as mulheres preparando a comida, todo mundo trabalhando junto … um ambiente bem familiar mesmo, bem crioulo mesmo”, sorri.
Em clima de comemoração e boas memórias, o sentimento que prevalece é o de “esperançar”. Que o retorno do MDA e das políticas públicas de comercialização de produtos da agroecologia e agricultura familiar tragam também novo impulso ao consolidado e bem-sucedido trabalho com milho crioulo de Fortaleza/Muqui e que essa experiência seja replicada em mais municípios do Espírito Santo e do Brasil!