O fato é de conhecimento público e inquestionável. A questão posta é: como proteger as abelhas – e outros insetos polinizadores e mesmo outros animais, principalmente aves como os colibris – do uso indiscriminado de agrotóxicos?
Um projeto de lei nesse sentido tramita desde 2019 na Assembleia Legislativa: o PL 686/2019, de autoria da deputada Iriny Lopes (PT). Sim, há quase dois anos! quantas milhares/milhões de abelhas poderiam ter sido salvas nesse período? A matéria é urgente, mas, segue aos trancos sendo jogada a escanteio pelos parlamentares defensores do agronegócio. Como se defender o agronegócio tivesse que se opor à defesa da vida.
“Quando as abelhas acabarem, eles próprios vão ser prejudicados”, expõe João Luiz Teixeira Santos, presidente da Associação dos Meliponicultores do Espírito Santo (AME-ES).
Em seu Art. 1º, o PL estabelece que “fica expressamente proibido o uso indiscriminado por qualquer meio de substâncias nocivas à vida de abelhas polinizadoras e outras espécies nos cultivos agrícolas em áreas próximas de colmeias no âmbito do Estado do Espírito Santo”.
A discussão atual está sobre qual seria a área de exclusão. Inicialmente, a proposta da parlamentar é de mil metros de diâmetro de distância. João explica que 1 km consegue assegurar as abelhas sem ferrão menores, do gênero Melipona, como as jataís, mirins e iraís, que voam diariamente, em busca de flores para produção de mel, no mínimo 500 metros. Já as mandaçais e uruçus, que estão entre as mais ameaçadas de extinção, voam dois mil metros, em média, e estariam, portanto, apenas parcialmente asseguradas. Já no campo das abelhas africanizadas e europeizadas, do gênero Apis, voam o dobro disso e estariam muito pouco protegidas.
Nos poucos debates promovidos até o momento sobre o PL, a direção foi no sentido de reduzir a área de exclusão para 500m, o que é uma contradição letal, aleta o presidente da AME-ES. “Alguma coisa mínima tem que acontecer. Não podemos continuar parados”, conclama.
Apicultor profissional em Viana e meliponicultor por paixão, Francisco de Assis faz coro com o colega. “Estamos no ultimato! Está tudo muito descontrolado. Precisamos de uma lei que eduque e conscientize as pessoas”, pede. “A gente não vê mais abelhas, não encontra mais enxames nos tocos de árvores. É muito grave”.
Na produção dessa matéria, Século Diário soube de uma mortandade recente em Muqui e outra em Regência, mas as notícias que circulam entre os produtores não dão conta do verdadeiro massacre que ocorre. “O índice de mortandade é muito maior, sem falar nos outros insetos. O apicultor não tem como fazer esse controle. Não tem nenhum órgão que faça a coleta e leve pro laboratório. Fica na responsabilidade da gente tirar amostra e mandar pra Santa Catarina e São Paulo”, lamenta. O custo, em média, de um exame fora do Estado, é de R$ 800 mais o frete.
“A gente teria no mínimo que ter acesso a laboratório para examinar. Foi veneno? Qual? Em que lugar? Não temos onde analisar, estamos conversando com a USP em Ribeirão Preto”, conta João Luiz.
Além da dificuldade de constatar os envenenamentos, o controle da aplicação de agrotóxicos precisa acontecer, em paralelo ao amadurecimento sobre a exclusão ideal (para as abelhas) e possível (para os produtores rurais convencionais).
“Nem que seja avisar com antecedência sobre a aplicação”, propõe o presidente da AME-ES. As abelhas podem ficar trancadas nas caixas durante a aplicação de venenos nas lavouras convencionais por até três dias, o que permite que elas sejam soltas com um pouco menos de perigo de envenenamento. Também pode-se evitar a pulverização das flores, pois mesmo as abelhas visitando outras partes das plantas e até o solo, ao não contaminar as flores, já se consegue poupar boa parte dos insetos.
Exemplos desse diálogo entre lavoura e colmeias já ocorre com sucesso entre os grandes cafeicultores do norte do Estado, que arrendam caixas de abelhas para aumentar a polinização e a produtividade do café. “Quando precisa aplicar agrotóxicos, eles avisam o apicultor. O grande problema é quando são produtores diferentes, vizinhos, que não conversam entre si”, conta Francisco de Assis.
Foi o que aconteceu no sítio da família da socióloga e agricultora Magali Motta, em Alto Verdade, região alta de Muqui, no sul do Estado. “Os sítios aqui são pequenos. Se um produtor de café por exemplo aplica agrotóxico, as nossas abelhas aqui acabam sendo envenenadas”, explica, referindo-se à morte de 14 caixas de seu primo na semana passada.
“Estou com as caixas para começar minha apicultura, mas depois dessa mortandade, estou com medo de perder tudo. Isso não foi um fato isolado, acontece com frequência e no Estado inteiro. Meu primo está com receio de retornar. No Sistema Agroflorestal [SAF] que eu estou fazendo, tem muita fruta, é essencial ter apicultura. Mas as abelhas não ficam só na nossa área, principalmente no inverno, que não tem alimentação suficiente. A gente gostaria de ter a segurança de que quem está ao nosso redor não vá utilizar agrotóxicos nocivos às abelhas”, clama.
Francisco de Assis reforça: o controle é benefício para todos. Não é uma questão de colocar apicultor contra cafeicultor ou meliponicultor contra produtor de mamão. “A lei [proposta por Iriny Lopes] não é em defesa do apicultor. É em defesa das abelhas e de outros insetos tão importantes quanto elas, é em defesa da biodiversidade e da vida”, salienta.