Sufocados pelo deserto verde dos gigantescos eucaliptais da Aracruz Celulose, hoje Fibria, os territórios quilombolas do norte do Estado sofrem de uma tensão crônica. Inicialmente político-econômica, essa tensão foi, ao longo das décadas, se infiltrando no cotidiano das comunidades, invadindo a intimidade das casas e do coração das pessoas. Simples questões domésticas e familiares são infladas por esse estado de prontidão, de insegurança e revolta que caracteriza a relação entre as comunidades quilombolas e a empresa.
João Batista Guimarães, o João do Angelim, é um protagonista da luta quilombola na comunidade do Angelim 1, em Conceição da Barra. “João é experiente agricultor, técnico agrícola, educador e colaborador do MST [Movimento dos Trabalhadorea Rurais Sem Terra], no MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores] e na Fase [Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional]. Sua luta atual é pela reconstrução de um modelo sustentável e agroecológico na região quilombola do Sapê do Norte, enfrentando o desafio diário de cultivar um território exaurido pelo plantio de eucalipto e marcado por violentos conflitos sociais e ambientais” – consta num post publicado na página “Apoiamos a Retomada Quilombola”, no Facebook.
O atentado ocorreu por volta das
18h20 do último dia sete, quando ele voltava do trabalho e se encaminhava para o trabalho na terra, no terreno de sua família, onde desenvolve um projeto de agroecologia e recuperação da água baseado em Sistema Agroflorestal (
SAF) e associado ao turismo da vila de Itaúnas.
Ao sentir o disparo, no joelho, chamou por socorro e foi amparado por colegas quilombolas que estavam próximos. Levado para o hospital, se recupera agora em casa e seu estado de saúde física é estável. O emocional, no entanto, ainda está dilacerado. “Acabou me assustando”, lamenta o fato de agora sentir medo numa região em que nasceu e viveu a maior parte da vida.
Ainda não há notícias sobre a investigação solicitada à Polícia Civil. A Fase, uma das organizações da qual João é colaborador e que lhe prestou solidariedade após o crime, denuncia que as ameaças a lideranças quilombolas são uma constante no território e que é iminente o risco de morte.
E alerta: “Repudiamos a omissão do poder público que não regulariza nem titula os territórios quilombolas do Sapê, ampliando a margem de violência e desrespeito aos direitos humanos na região. Repudiamos a Fibria, a Suzano Celulose e seus mega passivos sociais, econômicos e ambientais na região. Repudiamos as certificações florestais que legitimam a expropriação de terras e da paz no Sapê do Norte”.
“Eu só peço mais a questão de resguardo, de me deixar tocar o projeto em paz, desenvolver uma coisa legal que possa recuperar ambientalmente a região, o solo, a água, e gerar renda, emprego, conhecimento pras pessoas. Questão de direito e respeito. Não me vejo como inimigo de ninguém”, afirma João do Angelim.
Daniela Meireles, educadora da Fase, avalia que ainda há muito trabalho de esclarecimento e mobilização para ser feitos no território quilombola do Sapê. “Por muito tempo prevaleceu a necessidade de retomada das terras roubadas pela Fibria. Depois, a empresa foi cooptando as pessoas e hoje há uma grande divisão sobre qual a melhor forma de lidar com a questão da terra e da propriedade. As comunidades precisam se perguntar e definir qual é o projeto que querem para o seu território e se as melhores soluções são individuais ou coletivas”, pontua.