Uma “fêmea solitária” de muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), localizada no entorno capixaba do Parque Nacional do Caparaó, precisa migrar para outro fragmento florestal e encontrar um grupo da sua espécie com quem possa conviver e se reproduzir.
A translocação da Bonita – nome que recebeu dos pesquisadores do Projeto Muriquis do Caparaó – está prevista para acontecer está prevista para acontecer ainda este ano, em respeito ao período reprodutivo da espécie, que ocorre entre outubro e maio, devido à maior abundância de alimentos.
A arrecadação dos recursos necessários à delicada operação está sendo feita por meio da campanha de financiamento colaborativo Abrace o Muriqui! Ajude a Muriqui Bonita. A meta é conseguir R$ 72 mil até o próximo dia 30 de janeiro.
O fenômeno das “fêmeas solitárias” é típico da espécie, uma das poucas, entre os símios, em que as fêmeas é que saem de seu grupo natal em busca de um par para se reproduzir. Nas demais, esse movimento é feito pelos machos jovens.
A excessiva fragmentação da Mata Atlântica, no entanto, tem trazido sérios problemas para o muriqui, que é endêmico desse bioma, considerado um dos 34 hotspots – ecossistemas mais biodiversos e mais ameaçados do planeta.
A região de ocorrência do muriqui-do-norte se restringe às florestas do Espírito Santo, Minas Gerais e norte do Rio de Janeiro. Nas terras capixabas, o Caparaó é uma exceção à paisagem de micro fragmentos florestais isolados por lavouras, pastagens e plantações de eucalipto.
O Parque Nacional do Caparaó possui 31 mil hectares, 80% deles no Espírito Santo e o restante em território mineiro. É o segundo maior remanescente de Mata Atlântica capixaba, atrás apenas das Reservas de Linhares e Sooretama, no norte do Estado, que, juntas, preservam cerca de 46 mil hectares de Mata Atlântica.
No Caparaó, à área do Parque, propriamente dita, somam-se os remanescentes florestais em propriedades particulares, como o que Bonita está morando, no município de Dores do Rio Preto.
A bióloga e primatóloga Mariane da Cruz Kaizer, uma das coordenadoras do projeto, conta que o proprietário dessa pequena floresta convive com Bonita desde que comprou a terra, há onze anos. Mas somente há sete meses ela foi localizada pelos técnicos do parque e em seguida do projeto, tendo sido iniciados os trabalhos em prol de sua translocação.
Criticamente em Perigo
O Muriqui é o maior macaco das Américas – chegando a ter mais de um metro de altura, ficando atrás apenas de espécies africanas – e um dos mais ameaçados do mundo, estando Criticamente em Perigo, segundo classificação da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN, em inglês).
A população conhecida de muriquis do Caparaó está com cerca de 200 indivíduos, distribuídos em sete grupos já cadastrados. Em Santa Maria de Jetibá, na região serrana, já foram identificados pouco mais de 100, distribuídos em diversos grupos residentes em fragmentos florestais em propriedades familiares dos descendentes de pomerano.
A maior população conhecida fica na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga/MG, onde Mariane fez seu mestrado, com orientação da pesquisadora estadunidense Karen Strier, a maior especialista em muriquis do mundo.
No total, estão registrados menos de 900 indivíduos, nos três estados de ocorrência. Por isso, cada fêmea que fica incapacitada de se reproduzir, pelo isolamento florestal, representa uma perda enorme para as chances de perpetuação da espécie.
Esta será a terceira translocação de uma muriqui no Espírito Santo. A primeira experiência, no entanto, aconteceu em 2006 em Minas Gerais. “Foi um caso de sucesso!”, comemora Mariane. A jovem Eduarda foi retirada de uma área próxima ao Parque Estadual do Brigadeiro e levada para a RPPN Mata do Sossego.
Assim que chegou no novo endereço, Eduarda encontrou um novo grupo, foi bem recebida e teve seu primeiro filhote no ano seguinte. Em 2018, sua quinta cria nasceu e estão todos muito saudáveis.
O biólogo Fabiano Rodrigues Melo, da Universidade Federal de Viçosa, foi quem coordenou os trabalhos de translocação da Eduarda e está coordenando também a empreitada em favor de Bonita.
A equipe está procurando os melhores equipamentos para o sucesso da operação, o que inclui um rádio-colar para monitorar a Bonita por alguns meses após a translocação, verificando se ela conseguiu se reproduzir.
O aparelho será programado para se soltar do pescoço da Bonita pouco antes de sua bateria acabar, para que a macaca não tenha que viver com o colar para o resto da vida. Caído na mata, ainda com bateria, será possível resgatá-lo e colocá-lo em outro animal, com baterias novas. Cada etapa do trabalho seguirá rigorosamente os protocolos do Plano de Ação Nacional (PAN) dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça-de-coleira.
Em paralelo, Mariane está coletando dados comportamentais e também fezes dos muriquis do Caparaó, de onde é possível extrair material genético de forma não-invasiva. “Parte do meu doutorado é sobre a genética da população do Caparaó”, diz.
Exemplos para o ser humano
O doutorado está sendo feito na Universidade de Salford, em Machester/Inglaterra, de onde ela conseguiu apoio da National Geographic Society para a instalação de mais vinte câmeras trap, além das vinte já instaladas no dossel das árvores.
As armadilhas fotográficas têm flagrado momentos preciosos do dia a dia dos muriquis do Caparaó, inclusive da Bonita. E as próximas também mostrarão predadores em potencial, humanos – caçadores e cortadores de palmito – e não-humanos.
Além de grandes e muito ameaçados, os muriquis também são conhecidos por seu comportamento pacífico. Acredita-se que essa nobre e elevada não-beligerância se deva, em grande parte, ao comportamento sexual da espécie, onde as fêmeas copulam com todos os machos do grupo, não havendo rivalidades típicas da maioria das espécies animais.
A Dra. Karen Strier, em entrevista para a Revista Século, em 2002, afirmou que “Os muriquis são símbolos de como nós humanos podemos destruir a natureza e também de como podemos preservar este mundo. Eles também representam, na minha opinião, uma segunda chance, deles próprios sobreviverem nas matas que ainda existem, e de nós continuarmos sobre a Terra”.
Mariane concorda, assumindo ser mais uma apaixonada pela espécie. “Depois que você conhece os muriquis, não quer mais parar de conviver com eles”, diz, convidando a todos a conhecerem o universo dos muriquis e a ajudar a encontrar um novo lar para a Bonita.
“Queremos muito que ela e todos os outros muriquis tenham uma vida longa e feliz, e com muitos abraços correspondidos”, afirma, junto a seus colegas de projeto, no texto da campanha.