Estudantes da Ufes flagram 96 mortos em um dia, além de um bugio, ameaçado de extinção, morto duas semanas antes
Noventa e seis animais silvestres mortos em 14 km de estrada, em um único dia, o que equivale a sete animais atropelados por quilômetro, ou um a cada 200 metros. Esse foi o saldo de uma das atividades da aula prática de campo realizada por um grupo de estudantes da disciplina de Ecologia de Estradas, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Biologia Animal) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no início deste mês de junho, sob liderança do professor doutor Aureo Banhos, dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Sooretama, em Linhares, norte do Estado.
A maioria das vítimas, encontradas no dia, no trecho da BR 101 que corta a Reserva Biológica de Sooretama e sua zona de amortecimento, foi de animais de pequeno porte, entre aves, anfíbios, répteis e pequenos mamíferos, como macacos saguis. Mesmo não estando em risco oficial de extinção, são de grande importância para o equilíbrio ecológico da floresta.
Durante outros dois dias da aula de campo, os estudantes também se depararam com corpos de animais de maior porte e ameaçados de extinção, atropelados semanas e meses antes, como um bugio (foto abaixo) da espécie Alouatta guariba guariba, considerado criticamente ameaçado de extinção, a mais grave categoria de ameaça segundo a classificação internacional de espécies ameaçadas de desaparecer. Morto no final de maio, foi o primeiro registro de atropelamento deste tipo de primata na região. Macacos guigós, preguiças e outras espécies ameaçadas também são atropeladas com frequência preocupante, alerta o professor Aureo Banhos.
A Rebio forma, junto com sua vizinha Reserva Natural da Vale, o maior fragmento de Mata Atlântica de Tabuleiro em todo o país, um tesouro natural de relevância mundial, principalmente em tempos de pandemia e mudanças climáticas. Mas tem na BR 101, hoje, uma de suas principais ameaças.
“Essa rodovia tem promovido uma chacina, uma alta mortandade de animais naquele trecho. Isso não é uma fatalidade, não é acidente, é uma coisa que acontece diariamente e pode ser evitada e reduzida, se as medidas corretas forem adotadas, medidas que já sugerimos em 2014”, afirma o cientista.
As medidas, elenca, foram apresentadas há oito anos diretamente ao Ministério Público Federal (MPF), após um workshop internacional de especialistas, que discutiu as soluções mais eficientes e viáveis para solucionar um problema criado pelo governo federal na década de 1970, quando rasgou a Terra dos Animais da Floresta (tradução do tupi-guarani “Sooretama”), violando uma área de proteção ambiental criada na década de 1940.
Problema que foi sendo intensificado ano após ano, década após década, e que encontrava uma oportunidade de solução por meio do licenciamento ambiental para a duplicação da estrada, conduzido pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a partir de 2013, e que teve a concessionária ECO 101 como vencedora da licitação.
As principais sugestões dos cientistas envolvem instalação de redutores de velocidades; sinalização vertical orientando sobre a fragilidade do ecossistema local mediante a presença da autoestrada; criação de passagens aéreas para os animais arborícolas, como os bugios; e aprimoramento dos túneis para animais terrícolas, como antas, tamanduás e felinos.
Medidas emergenciais, muitas delas de baixo custo, ressalta Aureo Banhos, que deveriam ser implementadas para reduzir a mortandade enquanto a medida definitiva seria, paralelamente, providenciada: a retirada da estrada no trecho que atravessa a reserva e sua zona de amortecimento, cerca de 25 km, por meio de um desvio a oeste da floresta, promovendo, simultaneamente, a dinamização da economia da região, caracterizada por pequenas propriedades rurais que necessitam de melhores estradas e estímulos que possam estimular o aumento e diversificação da produção das comunidades rurais.
“A concessionária deveria ser responsabilizada por essas mortes. Assim como um caçador que entra na reserva e acaba abatendo indivíduos da nossa fauna ameaçada de extinção, esses atropelamentos que acontecem diariamente não são uma fatalidade, podem ser evitados, mas são mantidos pela negligência do poder público e em especial de quem está administrando a via“, reforça o pesquisador.
No vídeo publicado em suas redes sociais, com uma síntese da aula de campo, Aureo destaca a medição do barulho provocado pelos automóveis, que em muitos momentos ultrapassa os 50 decibéis, o que configura “impacto altíssimo para a audição dos animais”. No aparelho, é possível ver 70, 71 e 72 decibéis.
Há também registros das velocidades. Apesar da sinalização para o máximo de 80 km/h, muitos veículos passam dos 90 km/h, chegando a ser flagrado um que trafega a 127 km/h. Aureo Banhos destaca ainda que mesmo os 80km/h estão acima do padrão da estrada. “A velocidade máxima da via naquele trecho é de 60km/h, conforme consta no Plano de Manejo da Rebio. Quando ela era administrada pelo Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes], foram instalados radares de 60km/h, em 2011. Mas em 2017, já sob administração da ECO 101 eles foram retirados. No ano passado, a concessionária voltou com radares, mas de 80km/h. Tudo isso tem feito aumentar muito não só o número de atropelamentos de animais, mas também de acidente de trânsito, muitos com vítimas humanas”, ressalta.
“Infernal”
O fundo musical do vídeo sobre a aula de campo, Highway to hell, da banda AC/DC, faz uma alusão ao que aqueles 25 km de rodovia federal representam para a vida dos animais. “É um caminho para o inferno devido a enorme quantidade de mortes no local”, comenta um dos alunos, José Nilton da Silva, estudante de doutorado em Biologia de Vertebrados na PUC-MG.
“Hoje sabemos que o número de animais atropelados no mundo ultrapassa 100 vezes o número de coletas científicas que conseguem ser feitas. Sem falar no ‘efeito barreira’ que a rodovia causa”, acentua, referindo-se ao transtorno que uma estrada como essa gera aos animais, que evitam chegar perto, devido ao barulho, ao mau cheiro e outros efeitos, mesmo quando precisariam atravessá-la.
Em seu mestrado, José Nilton estudou os efeitos da BR-101 sobre a biodiversidade de Sooretama e concluiu que, com seus 20 metros de largura, ela produz um “efeito de borda” de quase 600 metros floresta adentro, em cada uma de suas margens. “É um efeito similar ao de pastagens e outras monoculturas com muitos hectares de largura. Na verdade, até maior, devido aos atropelamentos e aos efeitos de borda”, compara.
Por uma triste coincidência, Aureo conta que outro aluno presente na aula de campo, Brener Fabris, havia registrado, há um ano, um bugio no alto de um galho de árvore, bem em cima do asfalto, aparentemente tentando atravessar a pista, mas intimidado pelo grande obstáculo que ela representa, com seus inúmeros automóveis, ruído e poluição atmosférica.
“E agora vemos esse indivíduo atropelado. É uma espécie com população super-reduzida, onde a remoção de um único indivíduo pode acarretar consequências mais negativas para a viabilidade dessa população, que presta serviço ecológicos valiosíssimos, se alimenta de frutos e brotos, fazendo seu papel ecológico no controle das plantas e dispersão de sementes. Uma perda de um indivíduo que pode impactar uma população que presta um serviço ecológico importante na reserva, que está ameaçada de extinção, e que a gente conhece apenas um grupo”, descreve o professor.
“É triste. Se as medidas que sugerimos tivessem sido implementadas, certamente esses animais arborícolas [que vivem a maior parte do tempo nos altos das árvores, se alimentando e locomovendo em meio ao dossel da floresta] estariam conseguindo transitar por sobre a pista, passar de um fragmento para outro, como alguns estão tentando dispersar de seus grupos para encontrar outros grupos ou recursos e estão sendo atropelados”.
Na época, em 2014, o MPF encaminhou o dossiê dos cientistas à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável pela concessão da rodovia à iniciativa privada, e à própria concessionária vencedora, a ECO 101. “Mas nada foi feito até hoje. Tudo continua sendo negligenciado. É muito revoltante”, repudia.