Evidências são apontadas por especialistas que monitoram danos do crime da Samarco/Vale-BHP

O músculo comestível dos caranguejos de manguezal do Espírito Santo registra “aumento progressivo e lento de metais pesados, como arsênio, mercúrio, cádmio e chumbo”. A conclusão é dos pesquisadores do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), que acompanham os impactos do crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP, quase uma década após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 2015. O dado se soma a outro feito durante seminário sobre o tema, de contaminação dos peixes e camarões, incluindo em tecidos consumidos por humanos, como músculos e fígado.
O Índice de Bioacumulação (IBR) para todos os metais se mantém em níveis semelhantes aos da época do rompimento, o que indica a ausência de melhora na contaminação dos caranguejos, apontam os especialistas. Esse cenário pode ter relação com o declínio populacional e a desestruturação das populações de caranguejos.
Segundo os pesquisadores, um pico de metais ecotóxicos em 2019 impactou os biomarcadores em caranguejos de manguezal em 2022, e os efeitos ainda persistem. A reprodução dos caranguejos também parece afetada, com a produção de ovos variando mais pela capacidade de sobrevivência às mudanças ambientais do que por fatores intrínsecos à reprodução. Caranguejos de praia em áreas com maior acúmulo de lama, como a desembocadura, apresentam níveis de contaminação mais elevados.
A professora do departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Jaqueline Albino, enfatizou a coincidência entre o aumento de elementos químicos e as alterações na fauna, e alertou para a constatação de que a deriva dos sedimentos já alcançaram Abrolhos, na Bahia.
Com base em resultados das análises nas praias, restingas e manguezais entre Itaúnas, em Conceição da Barra, no norte do Estado, e Vitória, ela explicou que a dinâmica hidrológica e meteorológica do litoral direcionou cerca de 70% dos sedimentos do Rio Doce para o norte do Estado, enquanto o sul recebeu o residual de 30%, influenciado pela sazonalidade. A desembocadura do Rio Doce permanece como a área com a maior concentração de material ligado ao crime, sem alterações significativas nos níveis de lama ao longo do tempo.
O impacto físico também é expressivo, com a adaptação das praias ao excesso de sedimentos, causando erosão na restinga do Rio Doce e perda de metros de extensão. A pesquisadora apontou que o sedimento fino concentra elementos químicos associados aos maiores teores de lama na foz do rio, um padrão que se mantém consistente ao longo do monitoramento.
A pesquisadora Ana Paula Farro, também da Ufes, alertou sobre o risco de extinção da toninha (espécie geneticamente isolada e criticamente ameaçada) e do boto-cinza (vulnerável), que têm sua dieta baseada em animais exclusivamente marinhos. Ela expressou a indignação do grupo de estudos de mamíferos aquáticos, que teve seus estudos descontinuados pelo PMBA, e destacou que essa interrupção impede o acompanhamento de medidas de conservação cruciais para espécies que apresentam os padrões alimentares mais próximos dos seres humanos.
O oceanógrafo Joca Thomé, do Centro Tamar/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), reforçou que os estudos do Programa de Monitoramento devem direcionar as medidas de manejo e os programas de recuperação socioambiental, especialmente em relação à qualidade ambiental dos organismos como os caranguejos de manguezal, que impactam diretamente a sustentabilidade das comunidades locais e programas de transferência de renda.
Os dados foram apresentados durante seminário técnico-científico, que reúne 37 instituições de pesquisa sob a coordenação da Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (Fest) e anuência da Ufes, e termina nesta quinta-feira (24). Ao longo do período analisado, mais de 300 impactos decorrentes do crime foram identificados.
O evento é realizado em um momento de transição na governança do processo de reparação pelo crime socioambiental. O novo acordo de repactuação, homologado em novembro de 2024, prevê o fim da Fundação Renova até novembro de 2025, com um período de transição até maio do próximo ano. A responsabilidade pela supervisão das ações passará a um novo modelo coordenado por órgãos ambientais e representantes da sociedade civil, com apoio do ICMBio.