sábado, novembro 23, 2024
23.9 C
Vitória
sábado, novembro 23, 2024
sábado, novembro 23, 2024

Leia Também:

‘Condição para desocupar trilhos é revisão do acordo-desastre’

Indígenas invocam Convenção 169 da OIT. MPF reforça pleito e sugere intermediação da 4ª Vara Federal de MG

Divulgação

Em seu nono dia, a ocupação dos trilhos da ferrovia da Vale que atravessa os territórios indígenas Tupinikim e Guarani em Aracruz, no norte do Estado, reafirma que a condição para suspensão da mobilização é a retomada das negociações para revisar o acordo de reparação e compensação dos danos decorrentes do crime da Samarco/Vale-BHP no Rio Doce, ocorrido há oito anos.

Nesta segunda-feira (25), o juiz Gustavo Moulin Ribeiro publicou uma segunda decisão de reintegração de posse em favor da Vale, estabelecendo prazo para que a Polícia Federal (PF) realize a desocupação e multa em caso de descumprimento. “Concedo prazo de dez dias úteis para que a União, por meio do Departamento de Polícia Federal, reúna os recursos materiais e humanos necessários para dar integral cumprimento, sob pena de multa de R$ 1 milhão por dia útil de atraso”.

O despacho não altera a posição das comunidades, já apresentada no início da mobilização, no último dia 17 e reafirmada em cartas enviadas pelo Conselho Territorial de Caciques Tupinikim e Guarani das Terras Indígenas (TIs) Tupinikim e Comboios à Justiça Federal e às mineradoras autoras pelo maior crime ambiental do país. O pleito também foi reforçado, nesse domingo (24), pelo Ministério Público Federal (MPF) em um “pedido de reconsideração” enviado à 1ª Vara Federal de Linhares.

Na peça, o procurador da República em Linhares, Jorge Munhós, argumenta que “o caminho é o diálogo e não a força”, e pede pela suspensão da sentença de reintegração de posse, emitida pelo juiz Gustavo Moulin Ribeiro, de Linhares, em favor da Vale e outras empresas que utilizam a ferrovia, e para que o caso siga sob responsabilidade da 4ª Vara Federal, em Belo Horizonte, criada há um ano exatamente para julgar os processos relativos ao crime das mineradoras contra o Rio Doce.

“Considerando que há perspectivas de que uma mesa de negociação seja aberta, sob o comando do Juízo da 4ª Vara Cível e Agrária da Subseção Judiciária de Belo Horizonte – Tribunal Regional Federal da 6ª Região, o MPF, em acréscimo aos pedidos de reconsideração formulados pela Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e pela União, requer a reconsideração da decisão proferida no Evento 32, com a suspensão da ordem liminar de reintegração até que seja viabilizada a audiência de mediação junto ao Juízo da 4ª Vara Cível e Agrária da Subseção Judiciária de Belo Horizonte”, expõe o procurador, sublinhando que “a pergunta que ora se impõe não é se a decisão [de desocupação da ferrovia] será cumprida (…), mas como viabilizar seu cumprimento”.

Jorge Munhós ressalta que é “testemunha da reverência que [as comunidades indígenas] nutrem pelo Poder Judiciário e por Vossa Excelência [Juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro], reconhecido no território como um magistrado humano e sensível às pautas indígenas que costumeiramente são submetidas à jurisdição da Vara Federal de Linhares”, mas afirma que transformar os caciques em réus, conforme fizeram as empresas ao impetrarem o pedido de reintegração de posse, para desocupação da ferrovia, não é o caminho justo.

“Os caciques e lideranças (…) não têm poder de desmobilizar um ato de protesto que organicamente surgiu nas aldeias e que conta com centenas de aderentes. Eles atuam mitigando danos e controlando situações de desordem que poderiam ser ainda mais graves e trabalham para criar as condições para a desobstrução da linha férrea. Havendo decisão de assembleia territorial no sentido de que a desobstrução pressuporia a abertura de um processo de negociação, foge totalmente ao poder dos caciques fazer cumprir a decisão. Compreender essa peculiaridade é respeitar seus usos e costumes, na forma da Resolução 454 de abril de 2022 do CNJ [Conselho Nacional de Justiça]”, explica o procurador da República.

‘Direito não se negocia’

A mesma resolução é citada pela carta enviada pelo Conselho Territorial à Justiça Federal, ao lado de outros dispositivos legais que estabelecem as regras de negociação que devem ser seguidas para respeitar direitos constitucionais consolidados dos povos originários. “O que cremos é que a Justiça Federal não é um ambiente onde se propaga a injustiça, pelo contrário, temos certeza de que esse órgão serve justamente para a garantir que os direitos dos povos originários sejam respeitados e temos convicção que esses fatos levados ao judiciário serão considerados conforme determina a Resolução 454 do CNJ que se funda nos artigos 231 e 232 da Constituição e na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”.

A carta é assinada pelos caciques Antonio Carlos, de Comboios; Gilmar Coutinho, de Córrego do Ouro; Vilmar Oliveira, de Caieiras Velha; Valdeir Silva, de Pau Brasil; Marcela Rocha, de Irajá; e Nelson Carvalho, de Três Palmeiras, que salientam: “direito não se negocia, nem se discute: se respeita e aplica!”.

Invocando “a soberania dos povos originários”, as lideranças signatárias elencam três pontos principais da pauta da ocupação dos trilhos, estabelecidos pelas comunidades. O primeiro, “que sejam imediatamente reestabelecidas as negociações diretas entre as mineradoras e esses povos originários, no formato que vinha sendo praticado, determinando que as Mineradoras apresentem sua contraproposta aos termos que já lhes enviamos”.

O segundo, “que a Justiça Federal suspenda todos os processos, inclusive a ação anulatória e o processo de reintegração de posse, até o final das negociações”, e, em terceiro, afirmam: “desejamos ser considerados legítimos para estar e falar nos processos judiciais, conforme nos garante a lei”, numa referência à decisão do atual juiz da 4ª Vara Federal, Vinícius Cobucci, que, sem entrar no mérito, negou o pedido feito pela Associação Indígena Tupinikim Guarani de Caieiras Velha (AITGCV) para a revisão do acordo assinado pelas comunidades com a Fundação Renova, em 2021.

A revisão desse acordo foi o motivo da ocupação dos trilhos realizada durante 43 dias há um ano, que resultou na saída da Fundação Renova das tratativas com as comunidades, que passaram a ser feitas diretamente com as mineradoras mantenedoras, e com a retomada do pagamento do Auxílio de Subsistência Emergencial (ASE), equivalente ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), pago aos atingidos não-indígenas. Os outros pontos de pauta, no entanto, não foram cumpridos pelas mineradoras, que suspenderam as negociações que vinham acontecendo desde então, sob intermediação da 4ª Vara Federal, o que motivou essa segunda ocupação.

‘Acordo-desastre’

O acordo de 2021, explicam os caciques, foi “uma imposição e uma violência” que precisam ser sanadas. “A Fundação Renova, que tinha obrigação de garantir um acordo justo e igualitário, fez o exato oposto, transformando o acordo contra o qual lutamos em um novo desastre (…) Tivemos um acordo injusto, ilegal e violador de direitos, que resultou na pior indenização de toda a Bacia do Doce. Não houve consulta livre, prévia e informada [conforme determinada a Convenção 169 da OIT], na verdade as pessoas foram obrigadas a aceitar os termos do acordo-desastre porque ‘ou era aquilo ou nada’ (…) Todos os demais problemas surgem dessa violação, desse desrespeito. E nós, povos originários, não temos opção: só nos resta lutar contra essa violação continuada”.

Enquanto isso, acrescentam as comunidades: “nosso mangue e nosso rio estão envenenados, nossas praias estão poluídas, nossa pesca está proibida e o único meio de vida que temos hoje, o Auxílio Subsistência Emergencial, está ameaçado. Perguntamos: como poderemos sobreviver? Teremos de pescar, infringindo a lei apenas para nos envenenar com um peixe contaminado? Quando nossa terra, nossas águas, nosso mangue vão estar limpos?”.

Vitórias

Nos trilhos, homens, mulheres, idosos, crianças e jovens se revezam e se fortalecem na segunda ocupação em menos de um ano. A mobilização é pacífica e protegida pela força da ancestralidade. “Precisamos deixar claro que não temos intenção de desrespeitar a Justiça, o que pedimos é que se estabeleça um ambiente de respeito também por parte das mineradoras em que possamos discutir seriamente uma solução para resolver as violações que sofremos desde que esse acordo-desastre foi assinado. Sabemos que existe o risco de que a polícia federal venha nos tirar a força de onde estamos em nossa casa, mas nossos homens, mulheres e crianças estão dispostos a correr esse risco e prontos para receber a polícia com o som dos nossos tambores, maracás, casacas, rawe’i, baraka, baraka mirim e com nosso canto”, argumentam.

O tom é o mesmo que foi afirmado em junho pela deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) quando esteve em Aracruz para conhecer a situação das populações indígenas atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP e fortalecer a luta contra o Marco Temporal que, na época, estava às vésperas de ser retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), depois de anos suspenso. “Nós estamos armados com nossos espíritos e não adianta tentar nos calar. Pode assassinar um corpo indígena, mas as vozes do povo Guarani, a voz de nossos cantos ancestrais, é à prova de bala. Ninguém apaga o nosso canto”, entoou a parlamentar durante a manifestação realizada na ES-010.

Três meses depois, o Marco Temporal foi declarado inconstitucional pelos ministros da suprema Corte, que enterraram a possibilidade da aplicação da tese de uma vez por todas no país, sob um placar de 9 x 2.

Em relação ao crime da Samarco/Vale-BHP, os atingidos também obtiveram vitórias recentes importantes: o aceite da Justiça Britânica para inclusão da Vale como ré, ao lado da BHP Billiton, na ação de R$ 230 bilhões em favor de mais de 700 mil atingidos brasileiros, e a decisão, no mérito, pelo juiz Vinícius Cobucci, da 4ª Vara Federal, de incluir as comunidades costeiras de Linhares, São Mateus e Conceição da Barra, no litoral norte capixaba, nos programas de reparação e compensação de danos da Fundação Renova.

Mais Lidas