O número é o maior em cinco anos, como aponta a Comissão Pastoral da Terra
No ano de 2024, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc), registrou 12 ocorrências de conflito pela água no Espírito Santo, representando o maior número de casos dos últimos cinco anos. Em relação a 2023, indica um aumento de 71% nos casos registrados. As ocorrências representam mais de um terço das violências no campo, que somam 32, incluindo conflitos por terra (14) e trabalho escravo rural (6).
No entendimento da CPT, conflito pela água é toda ação que representa a resistência dos povos do campo frente à destruição e poluição de cursos de água e lençóis freáticos, o que inclui mobilizações em relação à apropriação particular da água e o combate à construção de hidrelétricas e barragens, assim como a luta para amenizar as suas consequências.
As ocorrências no Estado se deram por “Uso e preservação” (50%) e “Barragens e açudes” (50%). Houve aumento nas situações de “Não cumprimento de procedimentos legais” (de 4 para 6), “Destruição e poluição” (de 59 para 5), e “Contaminação por agrotóxico” (de 0 para 1 registro).
De acordo com a CPT, quando há a situação de conflito por “Não cumprimento de procedimentos legais”, quer dizer que, na maioria dos casos, o Estado, seja na esfera federal, estadual ou municipal, já está envolvido no conflito, geralmente atuando como mediador de um acordo entre agente causador e vítima, que acaba sendo descumprido ao longo do processo de compensação de danos.

Metade desses conflitos está no norte do Estado, na região do Sapê do Norte, território quilombola que agrega os municípios de Conceição da Barra e São Mateus, e em Marilândia. Em Conceição da Barra, a Comunidade do Linharinho denunciou violência por contaminação por agrotóxico; e a de Angelim I, o não cumprimento de procedimentos legais. Em Linhares, a comunidade de Regência, atingida do crime da Samarco/Vale-BHP, também denunciou o não cumprimento de procedimentos legais, e a comunidade de Degredo fez a mesma denúncia contra a mineradora Samarco. A violação também foi reportada na Praia de Guriri, em São Mateus, e na Comunidade Boninsegna, em Marilândia.
Na região metropolitana, as ocorrências envolvem associações de pescadores, devido à destruição ou poluição de corpos d’água. Quatro estão em Cariacica (Associação de Pescadores de Cariacica – Pescar; Associação dos Catadores e Caranguejeiros da Grande Nova Rosa da Penha – Ascapenha; Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Santana e Adjacências e Associação dos Pequenos Pescadores da Comunidade Nova Canaã). Na Capital, duas ocorrências foram reportadas pela Associação dos Pescadores, Marisqueiros e Desfiadeiras da Região da Grande São Pedro, em setembro, e pela Colônia de Pescadores.
Apesar de não trazer dados do Estado quanto à caracterização dos agentes e vítimas da violência derivada de conflitos por água, o relatório indica que as principais vítimas dos conflitos pela água no País foram os povos indígenas (71 registros), quilombolas (58), ribeirinhos (28) e posseiros (27). Pescadores e pequenos proprietários aparecem em 24 registros cada. Em relação aos principais agentes causadores dos conflitos, os empresários lideram com 64 ocorrências, seguidos por fazendeiros (58), o Governo Federal (36), mineradoras (34), hidrelétricas (31) e garimpeiros (14).
Conflitos por Terra
A maior parte dos conflitos tanto no País como no Estado são de violências contra a ocupação e a posse (14 das 32 ocorrências em território capixaba), e inclui despejos e expulsões, ameaças de despejos e expulsões, destruição de casas, roças e pertences, pistolagem, grilagem, invasões e outras violências. Comparado a 2023, quando foram contabilizadas 16 ocorrências, houve uma pequena redução, enquanto as ações de resistência mantiveram o mesmo número, com a diminuição de ocupações e retomadas (de 4 para 2) e aumento de acampamentos (de 0 para 2).
A região norte também concentrou a maioria dos conflitos por terra. Três deles ocorreram em comunidades quilombolas: Coxi e Angelim/Córrego do Felipe, em Conceição da Barra, e Morro da Onça, na divisa do município com São Mateus, que contabilizou outros três conflitos envolvendo trabalhadores rurais sem terra, no Armazém Inquinor, ao Lado da Fazenda Coqueirinho. Os demais aconteceram na Fazenda Agril entre Linhares e Aracruz, e no Acampamento em Área do Consórcio Público Vale do Itauninhas, em Pinheiro. Na região sul, houve dois conflitos no Acampamento na Região de Alto Pratinha, localizado no município de Mimoso do Sul.
As ações de ocupação e retomada ocorreram na Fazenda Experimental da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no município de São José do Calçado, no sul do Estado, e no Armazém Inquinor, em São Mateus, enquanto dois acampamentos foram instalados na Região de Alto Pratinha, em Mimoso do Sul, e no Armazém Inquinor, em São Mateus.
O relatório indica que quase metade dos agentes causadores da violência por terra nos últimos dez anos são fazendeiros (30%), seguidos por empresários (17%), governo federal (9%), grileiros (9%) e mineradora internacional (5%) – no Espírito Santo, a Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulosa e ex-Fibria). Quanto aos segmentos que mais sofrem violência, os povos indígenas lideram 21% dos registros, seguidos por posseiros (16%), trabalhadores rurais sem terra (14%) e quilombolas (12%).
‘Invasão Zero’
Dentre as violências registradas nos conflitos por terra, a comissão destacou episódios ligados ao grupo ruralista autodenominado “Movimento Invasão Zero”, surgido na Bahia, composto por grandes fazendeiros e proprietários de terras, que atuaram no Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Bahia, Paraná, Pará e Pernambuco, onde ocorreram ações assumidas e comprovadas enquanto ataques violentos por parte do grupo. Um caso que se destacou foi o assassinato de Maria Fátima Muniz de Andrade (Nega Pataxó), no município de Potiraguá, no sul da Bahia, em janeiro do ano passado, cometido por um fazendeiro ligado ao grupo “Invasão Zero”, em uma retomada indígena Pataxó Hã Hã Hãe.
Resgatados do trabalho escravo
Em 2024, foram registrados seis casos de trabalho escravo rural no Estado, resultando em 83 trabalhadores resgatados, incluindo duas pessoas com idades menores do que 18 anos. O número representa uma queda em relação a 2023, que apresentou o maior número de trabalhadores resgatados da última década – nove casos, com 80 trabalhadores nas denúncias.
Das ocorrências, 98% foram em lavouras de café localizadas em Afonso Cláudio, na região serrana; Brejetuba, no sul do Estado; e Governador Lindenberg, Rio Bananal e entre São Domingos do Norte e Pancas, no norte e noroeste do Estado. Um resgate envolveu uma fazenda de criação de bovinos para leite em Boa Esperança, também no noroeste.
Em todo o País, a produção cafeeira foi a atividade econômica onde mais se resgatou pessoas da condição de trabalho escravo, desde o plantio e colheita do fruto, beneficiamento, limpeza e remoção da casca e moagem.
Panorama nacional
O relatório apontou uma queda de quase 3% dos conflitos no campo em relação a 2023, com 2,1 mil conflitos em 2024 contra 2,2 mil no ano anterior, conforme dados atualizados do Cedoc-CPT. Em 2023, foi registrado um recorde desde o início da publicação e, apesar da pequena queda em 2024, o ano passado ainda apresenta o 2º maior número de conflitos da série histórica da CPT.
A manutenção dos conflitos em patamares altos foi associada aos conflitos pela água, além da persistência do aumento dos conflitos pela terra, impactados pelo crescente número de violências contra a ocupação e a posse. Houve ainda uma redução nos casos de trabalho escravo e nas resistências, o que contribuiu para que os dados gerais de conflitos no campo de 2024 fossem menores em comparação a 2023.