E o inverso, reafirma Dona Gessi, é igualmente verídico: quando uma comunidade não está “funcionando bem”, a sua cozinha de farinha simplesmente mingua, podendo até morrer.
Pois é essa relação de interdependência entre a cozinha de farinha e a saúde geral da comunidade onde ela está instalada é que explica uma verdadeira tragédia: a ausência de autênticas cozinhas de farinha nas comunidades do Território Quilombola do Sapê do Norte há mais de dez anos – o “elefante branco” construído no Angelim não conta, explica Gessi, pois é uma construção que não segue a tradição quilombola e a comunidade não abraçou”.
A saúde das comunidades quilombolas na região está muito debilitada. Falta de água, terra empobrecida, ausência de saneamento básico e outros serviços públicos essenciais (ausência do Estado), falta de assistência técnica (o Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural – Incaper não atende às comunidades), criminalização e perseguição das lideranças.
Esses são alguns dos efeitos colaterais gerados pelo mal primordial: a monocultura de eucaliptos, principalmente da Aracruz Celulose (Fibria). “É a raiz da nossa destruição. Esse estrago da terra que dificulta produzir até a mandioca, que é resistente”, relata a coordenadora da APTA.
Nesse período, a farinha de mandioca tem sido produzida improvisadamente, na casa de cada família: “rala a mandioca, espreme e torra na frigideira, no fogão mesmo”, ensina Dona Gessi. “É a base da nossa alimentação”, justifica, “não pode faltar”.
Mas para que a autêntica e saborosa farinha quilombola possa chegar às escolas e famílias carentes via o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), nos quais as comunidades do Sapê estão conseguindo participar, com sua ainda tímida produção agroecológica, é preciso apoio do Estado para construir espaços que atendam às características culturais tradicionais e também às exigência da Vigilância Sanitária.
Ao mesmo tempo em que lutam pela titulação de suas terras, usurpadas pela Aracruz Celulose há 50 anos, que lutam por assistência técnica para a produção de alimentos saudáveis e recuperação do solo e dos mananciais exauridos pelo deserto verde, que lutam para serem vistos pelo Estado e pela sociedade como detentores de direitos constitucionais e que lutam por moradia e educação, os quilombolas do Sapê do Norte também lutam para reavivar suas cozinhas de farinha.
Cozinhas de farinha que lhe garantirão mais dignidade na produção de um item essencial na alimentação e que pode enriquecer as cestas vendidas nas feiras, no PNAE e PAA, e essencial para restaurar a alegria, a união e a saúde individual e coletiva de todo um povo.
Reconstruir essas cozinhas é um dos pontos de pauta que a recém-empossada coordenadora-geral da APTA irá levar para uma reunião que está sendo agendada com a prefeitura de Conceição da Barra. “O correto é uma cozinha para cada comunidade”, diz Gessi. “É cozinha, porque é lá que a gente faz tudo, o café, o almoço, a janta … e a farinha!”, sorri, esperançosa.