Um incêndio criminoso destruiu o arquivo do Ticumbi e de outras práticas do folclore no Espírito Santo. Além de atear fogo no local, o ladrão levou ainda a viola de Chico Dantas, um instrumento histórico de grande valor simbólico, entre outros instrumentos. Ainda não se sabe se o criminoso agiu sozinho, e se houve crime de mando.
O crime foi praticado às 5 horas desta sexta-feira (14), em Conceição da Barra, no norte capixaba. Marcelo “Corredor”, conhecido morador da cidade por práticas de roubos, foi responsabilizado pelo crime. Está preso e foi conduzido pela Polícia para o DPJ de São Mateus. O autor já foi preso em diversas ocasiões por este tipo de crime.
Ainda não se sabe se Marcelo “Corredor” contou com algum comparsa. Nem se houve mando, considerando que as elites brancas da região confrontam a cultura negra. O Ticumbi é um dos eventos mais importantes entre estes. Foi levantada a hipótese de um segundo roubo, também seguido de incêndio, realizado por Marcelo “Corredor” ainda na manhã desta sexta-feira, que tenha como objetivo caracterizar sua ação como um simples ato criminoso, mascarando eventual crime de mando.
O acervo sobre o Ticumbi, contato em livros, reportagens, objetos – como as roupas usadas nos eventos culturais -, além dos instrumentos do folclore, são guardados em uma sala. Formam uma espécie de museu sobre o folclore negro da região.
Tudo é cuidado pelo mestre Terto Balbino, de 82 anos. O mestre conta que o ladrão quebrou o cadeado, e revirou gavetas. Não encontrou dinheiro. Mas levou a famosa viola de Chico Dantas, que morreu na década de 70 do século passado. Um instrumento valiosíssimo, considerando a fama do maior violeiro da região.
O ladrão também levou os óculos de grau usados por mestre Terto Balbino, uma sanfona e faca. Depois colocou fogo no restante do material que estava na sala. O mestre relata que foram queimados livros, um arquivo importante que registra a história contada a cada ano, nas apresentações do Ticumbi. Este material ainda não foi devolvido a mestre Terto Balbino pela Polícia, que o recuperou.
Na sala destruída, mestre Balbino passava boa parte de seu tempo. É ele quem prepara os textos que são apresentados durante o período em que as manifestações folclóricas são realizadas. O mestre lamenta a ação criminosa contra a cultura negra e diz que não será possível reconstruir as histórias contadas nos livros.
Também diz que junto com o material sobre o Ticumbi foi queimado o acervo do Alardo, Jongo, Reis de Bois e da Pastorinha, outros folclores da cultura negra capixaba.
Segundo relato do mestre Terto Balbino,a destruição do local onde o material era guardado só não foi maior porque um vizinho, o comerciante Ademir Cabral, viu o fogo e junto com outra pessoa, o apagou.
O Ticumbi
Veja abaixo texto do jornalista Rogério Medeiros sobre o Ticumbi.
O Ticumbi é um grupo folclórico de Conceição da Barra, integrado somente pelos negros da região, tratando-se também de uma manifestação única no País, pois só é encontrado no município de Conceição da Barra. São negros devotos de São Benedito, que louvam o santo na passagem de ano.
Na época da passagem de ano, eles se vestem com uma roupa branca, cobertos por uma bata. A cabeça é enfeitada com flores. Em longas evoluções, durante duas horas se apresentam na porta da Igreja de São Benedito. Além do pandeiro, há apenas um violeiro que tira as canções de louvor a São Benedito. Há no entanto, uma disputa entre dois reis para saber qual deles dará o baile de São Benedito. Embaixadas são tiradas pelos secretários dos dois reis (de banda e de congo) e há uma luta entre eles, mas invariavelmente vence o rei cristão, que é o rei de congo. Na verdade, eles reproduzem as velhas lutas entre mouros e cristãos, que por oito séculos tomaram conta da Europa.
No dia anterior à apresentação, o grupo desce o rio Cricaré, conduzindo a pequena imagem de São Benedito do Córrego das Piabas – que fica na localidade de pescadores, conhecida como Barreiras – para ser louvada pelos seus devotos em Conceição da Barra. Este é o único dia em que a imagem pode sair da localidade de Barreiras.
Essa imagem é considerada pelos negros o mais milagreiro da região. Era conduzida sempre pelo líder dos escravos da região, Benedito Meia-légua, que foi queimado pelos fazendeiros escravocratas dentro de uma árvore, onde havia se refugiado. Depois do incêndio a imagem foi encontrada intacta.