O crime da Samarco/Vale-BHP pode ter afetado uma enorme variedade de organismos marinhos ainda pouco estudados que ocorriam na região entre Minas Gerais e Espírito Santo, atingidos pela lama tóxica da barragem rompida em Mariana (MG). Uma dessas espécies é a água-viva Kishinouyea corbini Larson, considerada extremamente rara, e cuja única população estabelecida e conhecida no Atlântico Sul Ocidental é registrada na Praia dos Padres, em Aracruz.
O alerta é dos pesquisadores Antonio Carlos Marques, professor do Instituto de Biociências (IB) e diretor do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da Universidade de São Paulo (USP), e Lucília Souza Miranda, pós-doutoranda no IB-USP. Eles publicaram artigo científico na revista BIOTA Neotropica, divulgado pela Agência Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), em que chamam a atenção para os impactos ocultos da maior tragédia socioambiental do País.
Segundo Marques, a água-viva K. corbini. é um exemplo emblemático da perda de informação que o crime pode ter causado sobre diversos animais da fauna marinha ainda pouco estudados, ou até mesmo totalmente desconhecidos.
“Por ser parte de um grupo que vive majoritariamente em águas frias, com raríssimas espécies em águas tropicais, a população dessa espécie de água-viva encontrada no litoral do Espírito Santo teria uma história evolutiva ímpar, relacionada à sua fisiologia, ecologia e interações com outros organismos em um ambiente tropical, diferente do ambiente ancestral onde se originou e se desenvolveu”, pontuou o pesquisador.
Marques e Miranda informam que essa espécie foi a primeira da classe Staurozoa registrada no Brasil, exatamente na costa do Espírito Santo, e tem característica peculiar, já que vive com a boca para cima capturando alimento, enquanto a maioria das águas-vivas tem a boca para baixo. Ela também não nada, vivendo presa ao assoalho marinho ou a algum outro organismo por meio de um pedúnculo.
A classe Staurozoa, como afirmam, é relativamente pequena, composta por cerca de 50 espécies com distribuição muito concentrada em águas polares e temperadas, e importante na evolução do filo Cnidária, que inclui as medusas, anêmonas-do-mar, caravelas-do-mar, corais moles e duros e hidras de água doce, e um dos primeiros grupos de animais marinhos a surgir nos oceanos.
Além do Espírito Santo, no Brasil há registro de K.corbini no arquipélago de Abrolhos, na Bahia, que também pode ter sido impactado pelo crime. A espécie, no entanto, nunca mais foi encontrada na região.
Marques ressalta ainda que o litoral capixaba apresentava, antes do crime, uma grande diversidade de cnidários, com grandes populações de diferentes espécies. “O substrato marinho da região era tomado por algumas espécies chamadas de construtoras – como corais moles, algas e coralíneas, como os rodolitos [algas calcárias] –, que acabam por criar ambientes peculiares para a existência de outras espécies”, explicou.
A identidade molecular desses animais encontrados no Estado foi recém-estudada por Miranda em sua pesquisa de doutorado, mas ainda não havia informações sobre suas relações tróficas (entre presa e predadores), nem se as populações eram isoladas ou interdependentes, o que torna ainda mais difícil estimar os efeitos sobre os animais de um evento da magnitude da tragédia de Mariana. O pesquisador lamenta que todas essas possibilidades de estudo possam ter sido perdidas, “talvez permanentemente”.
“É como se diversas páginas cruciais para a compreensão de um livro tivessem sido arrancadas e seremos obrigados, a partir de agora, a lê-lo sem ter acesso a esses trechos essenciais”, comparou.
(Com informações da Agência Fapesp)