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Programa de Transferência de Renda exclui maioria dos atingidos, alerta MAB 

Critérios limitam reconhecimento para indenizações

O acordo de repactuação assinado para reparação dos impactos causados pelo crime socioambiental da Vale/Samarco-BHP continua a provocar insegurança entre comunidades atingidas, que têm se preocupado com as limitações impostas pelo novo modelo de governança das ações reparatórias, que estabelece, entre outras mudanças, a criação do Programa de Transferência de Renda (PTR). O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denuncia a exclusão de milhares de famílias que não serão reconhecidas como elegíveis para receber indenizações, em razão dos critérios definidos no acordo. 

Sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), o PTR substitui o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) e estabelece um aporte de R$ 3,75 bilhões para atender agricultores familiares (PTR-RURAL) e pescadores profissionais artesanais (PTR-PESCA). O valor financeiro será de 1,5 salário-mínimo mensal por indivíduo, por até 36 meses, seguido de 1 salário-mínimo mensal por mais 12 meses.  

Diante da falta de participação das populações afetadas nas negociações conduzidas em sigilo pela cúpula dos governos federal e do Espírito Santo e Minas Gerais, comunidades impactadas denunciaram uma série de insuficiências e violações de direitos no processo de definição do acordo, incluindo a exclusão de agricultores e pescadores artesanais impactados, mas que vivem fora do perímetro definido. 

Negociações foram conduzidas em sigilo pela cúpula dos governos federal e do Espírito Santo e Minas Gerais: Marcelo Camargo/ Abr

No Espírito Santo, o acordo estabelece que serão contemplados apenas agricultores que desenvolvam, em 30 de setembro de 2024, atividades econômicas em propriedades rurais localizadas em até cinco quilômetros da calha principal do Rio Doce. Quanto aos pescadores, a exclusão se estende às áreas costeiras após o distrito de Nova Almeida, na Serra, incluindo a capital, não reconhecidas como elegíveis para as indenizações individuais. 

Para o pescador artesanal Fabrício Caldeira Alves, conhecido como Fafá, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e morador de Itaúnas, o novo acordo ignora a realidade vivida pelos pescadores artesanais e agricultores que foram diretamente impactados pelo crime socioambiental, mas que ficaram de fora dos critérios de reconhecimento. 

“Na época do desastre, em Itaúnas, como é um lugar muito turístico, ficamos coagidos a não dizer que a água estava contaminada. Muitos atingidos foram injustiçados, só nove pessoas receberam o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) na época do desastre. Agora o novo programa deveria abraçar mais pessoas, mas não é o que está acontecendo. O agricultor só é reconhecido se estiver a cinco quilômetros da margem do Rio Doce. A maioria não vai ter direito”, alerta.  

Acervo Pessoal

Ele relata que o impacto da lama não se limitou à calha principal do Rio Doce, mas atingiu também comunidades que dependem de outros rios e áreas costeiras, como o Rio Itaúnas. “A lama entrou no Rio Itaúnas, foi até lá em cima. Quem captava água nessa época perdeu tudo, a plantação toda morreu”, relembra.  

Fafá descreve que a contaminação destruiu plantações e afetou diretamente a pesca e agricultura, deixando até hoje muitas famílias que vivem além do limite estipulado pela repactuação sem sustento. Com cerca de 26 mil pescadores afetados no Estado, muitos estão fora do processo de indenização devido às limitações de reconhecimento ou porque o acordo judicial exclui aqueles que acessaram indenizações anteriores, como o polêmico sistema Novel, encerrado em 2023 por falta de amparo legal. 

O Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes)  também se posicionou contra a destinação dos recursos a obras não prioritárias, enquanto pescadores sofrem com a perda de subsistência e com a insegurança alimentar causada por metais pesados na água e nos alimentos. A Fundação Renova, responsável pela reparação, é acusada de omissão em alertar as comunidades sobre os riscos da contaminação, agravando a crise e a vulnerabilidade das comunidades atingidas. 

Para Fafá, a insegurança em relação ao PTR reflete uma história de negligência e injustiça que culminou em um acordo de repactuação firmado sem a participação das comunidades atingidas. O representante do MAB ressalta que isso gerou uma série de dificuldades para as famílias obterem as condições necessárias para reconstruir suas vidas, além de um sentimento de exclusão e de violação de direitos.  

Além disso, comunidades tradicionais, protegidas por normas internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante consulta prévia, livre e informada em questões que impactem seus modos de vida, foram ignoradas no processo, aprofundando as desigualdades. 

A Renova fez errado desde o início”, critica Fafá, que denuncia a perpetuação de injustiças com as comunidades afetadas ao longo do processo de reparação. “Fizeram o acordo sem nos ouvir, e continuam a errar”, afirma. 

Impunidade

O valor da repactuação a ser pago pelas empresas criminosas foi estimado em R$ 167 bilhões, dos quais R$ 95,5 bilhões deverão ser transferidos ao longo de 20 anos aos cofres da União, estados do Espírito Santo e Minas Gerais, e para 49 municípios afetados, para serem aplicados em políticas de reparação socioambientais. As mineradoras ainda terão obrigações financeiras de R$ 31,5 bilhões para ações de reparação direta, incluindo indenizações e assistência às comunidades impactadas. Além desse montante, as empresas afirmam ter desembolsado cerca de R$ 37 bilhões por meio da Fundação Renova, criada para gerir ações de reparação e compensação, como parte do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC).  

Milhares de famílias ainda lutam para serem reconhecidas como vítimas do crime e garantirem seus direitos no processo de reparação pelo rompimento da barragem de Fundão, que liberou aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, devastando vilarejos, poluindo o Rio Doce e atingindo o litoral do Espírito Santo.  

O crime socioambiental, considerado o maior da história brasileira, resultou na perda de 19 vidas, na contaminação de 684 km do Rio Doce e no impacto a mais de 2,5 milhões de pessoas em três estados do país. 

Diante da impunidade das mineradoras, absolvidas em decisão de primeira instância pela Justiça Federal de Minas Gerais, os atingidos acompanham o julgamento da BHP Billiton em Londres, na Inglaterra, na expectativa de que o processo internacional responsabilize as empresas e traga justiça para as populações afetadas. Recentemente, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou recurso para reverter a sentença, que absolveu as empresas Samarco Mineração, Vale, BHP Billiton e Vogbr Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., além de seis executivos e técnicos, pelas acusações criminais relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG), em 2015. 

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