Parecer em ação judicial aponta destruição ambiental e presença de indígenas na área
A Defensoria Pública da União, por meio do defensor regional de Direitos Humanos em exercício no Espírito Santo, Pablo Farias Souza Cruz, solicitou à juíza federal Maria Claudia de Garcia Paula Allemand, a interrupção imediata das obras do condomínio residencial Manami Ocean Living, localizado no Morro de Guaibura, em Guarapari. O parecer reforça as preocupações contra os impactos do empreendimento, diante da ameaça a ecossistemas protegidos e direitos culturais e ambientais locais, conforme aponta parecer técnico da Câmara de Patrimônio Ecológico, Natural e Paisagístico (CPENP) do Conselho Estadual de Cultura (CEC), corroborado no documento.
Os conflitos gerados pelas intervenções na área de sensibilidade ambiental provocaram uma ação civil pública (ACP), proposta pela ONG Gaya Religare, que questiona os danos à mata atlântica e às tradições culturais da região, e ainda a presença no território de indígenas. Recentemente, a ACP foi federalizada após um parecer do Ministério Público Federal (MPF), confirmando que o caso envolve potenciais violações, o que exige análise pela Justiça Federal.
Segundo Juliana Souza, representante da entidade, que acompanha o caso desde 2018, a expectativa é de uma decisão favorável da Justiça. “Com toda a questão indígena e os pedidos de embargo da obra pela Defensoria e pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC), fica difícil para a juíza ignorar órgãos públicos de tamanha relevância”, avalia. O juiz anterior do caso, Luiz Henrique Horsth da Matta, declarou-se inapto, e o processo foi redesignado para Maria Claudia de Garcia Paula Allemand.
O parecer da Defensoria Pública inclui o pedido de “embargo das obras de intervenção na área” e a “restauração imediata de todos os elementos naturais presentes no Morro de Guaibura, destruídos pelo desmatamento e pelo início das obras do Condomínio Residencial Manami, que envolvem o uso de britadeiras para perfurar o costão rochoso, danificando permanentemente a vegetação e a fauna da região”. O relatório técnico apresentado pelo CEC considera que a construção afeta diretamente área tombada, importante por sua diversidade ambiental e relevância cultural.
Além disso, o defensor público regional Pablo Farias Souza Cruz destacou a presença de “indicativos robustos no sentido de documentar a rotulação do território como indígena”, citando declarações oficiais que atestam o vínculo histórico-cultural do povo Borum M’nhang Uipe com o local. Nesse sentido, a Defensoria solicita ao juízo federal que conceda uma tutela de urgência, alegando que há “dano ambiental e dano ao patrimônio cultural tombado em curso”, uma situação que, segundo o documento, “requer a paralisação imediata das obras, com fixação de multa diária para o eventual descumprimento”.
A Vila de Guaibura, localizada no bairro Enseada Azul, é um território do povo indígena Borum M’nhang Uipe, como atestou pesquisa realizada pela moradora da comunidade e integrante da ONG Gaya Religare, Potira de Almeida, enviada à Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai) em janeiro deste ano. Potira também entregou uma cópia do estudo ao governador Renato Casagrande e ressaltou a resistência da comunidade a projetos de especulação imobiliária, como o condomínio de luxo Manami, para garantir a proteção de seu território e a preservação de sua identidade histórica e cultural.
A história do local remonta à década de 1930, quando a comunidade começou a ocupar a área como um espaço cultural e de práticas comunitárias do que de moradia. “Ali era um lugar de todos, parte da grande família que mora lá”, explica Juliana. Ela aponta que o morro tem importância para a comunidade por reunir práticas tradicionais como extrativismo de conchas, frutas e ervas, além de servir como palco de rituais religiosos, histórias e lendas que carregam a cosmologia local. Documentos da Prefeitura de Guarapari de 2011 já reconheciam o morro como patrimônio cultural e atestavam a presença de uma comunidade tradicional na área.
Juliana Souza reforça que o processo que levou ao empreendimento imobiliário teve irregularidades desde o início, incluindo questionamentos sobre a legalidade das licenças concedidas e a posse das terras, o que envolve uma disputa com a Mitra Arquidiocesana, proprietária de uma área invadida e cercada pela empresa Design 16, responsável pela construção do condomínio. Ela relata que o empreendimento já havia sido alvo de fraudes identificadas pelo Ministério Público da Fazenda nos anos 1990, o que levou a um embargo. Houve novas investidas para retomar o projeto em 2000, novamente barradas devido as negativas emitidas pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema) e pelo Conselho Estadual de Cultura, pois o Morro de Guaibura e o Morro do Judeu já eram reconhecidos como bens tombados.
Ameaças ambientais
Juliana aponta que pressões para novos empreendimentos, sustentadas por fraudes e irregularidades legais, colocam em risco o mangue do Morro da Guaibura, um ecossistema único e possivelmente um dos menores do Brasil. Pesquisadores da Ufes, ao estudarem a área, encontraram cinco espécies de caranguejos e mais cinco de plantas de mangue, que está extremamente ameaçado pela construção de estruturas de concreto ao seu redor. Essas obras interferem na vegetação, que é essencial para a irrigação natural da área alagada.
Em 2023, a comunidade de Guaibura, na Enseada Azul em Guarapari, se mobilizou para transformar seu território em unidade de conservação, com o objetivo de conter a especulação imobiliária e proteger o ecossistema local e seu modo de vida tradicional. Por meio de um abaixo-assinado, os moradores ressaltaram que o condomínio de luxo planejado na área, com capacidade para 460 pessoas (cerca de três vezes a população local), ameaçava gravemente a manguezais, aquíferos e a vegetação da Mata Atlântica da Área de Preservação Permanente (APP).
No entanto, uma portaria da Secretaria de Meio Ambiente (Seama), nº 011-R de 2016, permitiu que a área tombada fosse desconsiderada no processo de licenciamento ambiental. Juliana argumenta que essa medida é ilegal, já que a Constituição do Estado exige uma lei para desconstituir o tombamento de bens culturais.
“Essa portaria tem permitido um monte de atrocidades no nosso Estado: porto para todo lado, sal-gema, privatização de parques, tudo isso ligado à ideia de que a Mata Atlântica não é mais um patrimônio capixaba. Essa interpretação da norma é completamente enviesada e nula”, critica. Ela acrescenta que, uma vez que a nulidade dessa portaria seja reconhecida, isso poderá invalidar uma série de outros processos e gerar um risco jurídico significativo no Estado.