Com apenas 12% de remanescentes de Mata Atlântica, mais de 90% deles em áreas particulares, o Espírito Santo tem um longo caminho pela frente na proteção das florestas e sua biodiversidade, exigindo políticas públicas muito bem orquestradas com esse objetivo.
A principal diretriz nesse sentido, o programa Reflorestar, patina em tímidos números que, em média, costumam ser equivalentes ou até menores do que o somatório de áreas licenciadas ano após ano para a expansão da monocultura de eucaliptos.
A urgência da restauração florestal no Estado e em outras partes do mundo tropical e temperado, há muito deixou de ser discurso e pauta restrita ao “gueto” ambientalista. Principalmente, desde o reconhecimento científico dos chamados “serviços ambientais” fornecidos pelas áreas naturais – como produção de água, proteção dos solos e segurança climática – e hoje circula livremente entre governos, relatórios de grandes corporações multinacionais e até no mercado financeiro.
A pandemia de Covid-19, no lastro das mais de 686 mil vítimas fatais e dos trilhões de dólares já computados como perdas econômicas advindas da maior crise sanitária mundial desde a gripe espanhola, fez emergir mais uma justificativa para que os investimentos em proteção ambiental sejam inteligentemente implementados o mais rapidamente possível, como forma de prevenir futuras pandemias e, como “bônus” antipandêmico, garantir os já reconhecidos serviços ambientais.
A constatação é de um grupo de pesquisadores, autores do artigo
Ecology and economics for pandemic prevention (Ecologia e Economia para prevenção de pandemia, em tradução livre), publicado no último dia 23 na
Science Magazine, uma das revistas científicas mais prestigiadas do mundo, ao lado da
Nature.
Segundo reportagem do jornal ambiental O Eco, os autores – entre eles a brasileira Mariana Vale, doutora em Ecologia pela Duke University e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) – calculam que um investimento de US$ 27 bilhões em proteção ambiental, neste ano de 2020, poderia iniciar um trabalho eficaz para prevenir futuras pandemias virais.
A cifra, comparam, representa 0,54% do total de perda de Produto Interno Bruto (PIB) global, estimada em US$ 5 trilhões até o momento e menos de 1% do orçamento anual dos Estados Unidos com o setor militar.
A orientação é pela manutenção de uma média de US$ 20 bilhões de investimentos anuais. Ao longo de dez anos, o montante investido em ecologia seria inferior a 2% dos custos estimados para a pandemia de Covid-19, em torno de US$ 10 a US$ 20 trilhões.
As principais ações propostas pelos cientistas são voltadas à prevenção de desmatamento, combate ao tráfico de animais silvestres, vigilância sanitária em áreas de alto risco de surgimento de doenças emergentes e biossegurança em espaços de criações de animais – que, no seu conjunto, se mostram eficientes para reduzir a capacidade de transmissão de vírus patológicos para seres humanos a partir de animais silvestres, como aconteceu com o coronavírus (SARS-CoV-2).
Restauração florestal urgente
“O artigo levanta pontos fundamentais que levaram à situação atual de pandemia de Covid-19, como o consumo de carne de animais silvestres e a fragmentação de habitat, ambos elementos presentes também no nosso Estado”, observa o ecólogo e professor de Biologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Mario Garbin.
A fragmentação das florestas pelo desmatamento, explica, aumenta a chance de contato humano com a vida selvagem. “Se a perda e a fragmentação de habitats são uma causa para a dispersão de vírus, é razoável supor que, além de evitarmos perdas de áreas naturais, a restauração de áreas degradadas seja uma necessidade. Reduzir o perímetro das florestas é fundamental para minimizar a probabilidade de contato com a vida selvagem”, expõe, acrescentando a necessidade de parar também a caça, prática ilegal e perigosa que resiste nos remanescentes florestais capixabas, pois “aumenta o contato com a fauna silvestre, abrindo rotas de disseminação de doenças”. “Caça é perigosíssimo”, sublinha.
A verdade é que, sob ação de distúrbios de qualquer ordem, os animais se deslocam em busca de alimentação, aproximando-se de áreas mais antropizadas, como sítios, vilas e mesmo cidades. Interagindo mais com animais domesticados, os animais silvestres e os vírus que eles carregam podem encontrar nesses animais de criação bons hospedeiros e, a partir daí, chegar ao organismo humano pelo contato com o sangue dos animais mortos para consumo, como aconteceu com o coronavírus (China, 2019), o nipa (Indonésia, 1997), o ebola (África, 2013) e mesmo o HIV, também originário da África.
No Espírito Santo, chamou atenção também um surto do vírus west nile ocorrido em 2019 em cavalos no norte do Estado. O patógeno é originário do Nilo, no norte da África, migrado para Israel nos anos 1990 e para os Estados Unidos nos anos 2000. O ciclo natural do west nile é de mosquitos para pássaros, por isso, quem entra no ciclo como intermediário, como humanos ou cavalos, acaba morrendo por não ter imunidade natural.
“Ninguém sabe como o vírus chegou aqui, só encontraram os animais doentes. Pode ter sido importado através de um cavalo doente vindo dos Estados Unidos e os mosquitos naquela criação o espalharam para outros animais. Isso deveria ser elucidado”, ressalta o virologista e também professor do Departamento de Biologia da Ufes, Edson Delatorre.
Cadeia global de interações
Essa relação entre doenças epidêmicas e desmatamento é estudada há décadas pela Ciência, lembra Delatorre. “Arboviroses no Brasil são o principal medo de epidemiologistas. Dengue, zika, chikungunya e febre amarela vieram da África, mas há arboviroses nativas, como a oropouche da Amazônia e o rocio, mas que ainda não emergiram, porque os vírus africanos chegaram primeiro e ocuparam as populações hospedeiras”, explica. Fragmentos muito pequenos criam condições de instabilidade dos ecossistemas, favorecendo a propagação de arboviroses, ressalta.
Mario Garbin evoca o Patrono da Ecologia do Brasil. “[Augusto] Ruschi, na década de 1980, dizia que o desmatamento do Espírito Santo ia trazer consequências pra nós”, diz.
No caso da febre amarela, Delatorre lembra que o Brasil vive surtos a cada cinco ou dez anos. O último, entre 2016 e 2017, já era de certa forma esperado. “Faltou uma prova cabal com Mariana”, explana, referindo-se as hipóteses de que a epidemia teria eclodido naquela data em decorrência do crime da Samarco/Vale-BHP. Independentemente da comprovação, o fato é que, “por algum motivo o vírus encontrou situação propícia para rápida dispersão nessa região, em virtude essencialmente do aumento do número de mosquitos e da alta população de macacos, que serviram como hospedeiros”.
Por isso, uma nova onda de febre amarela deve demorar a voltar, argumenta, pelo menos até a população de macacos se restabelecer. “Agora é a hora de fazer monitoramento dos macacos”, conclama.
Em 2019, conta, com o surto já extinto, foi encontrado um macaco bugio morto em Casimiro de Abreu/MG, num fragmento de floresta de 4 km de diâmetro, testado positivamente para febre amarela. “Uma linhagem de vírus que tinha se mantido ali naquele fragmento por três anos. Em fragmentos de floresta aqui no Espírito Santo pode haver os mesmos casos. Eles estão dispersos, mas quando aumentar a população de macacos, pode ter um novo ciclo”, alerta. “Se o coronavírus veio de morcegos da Ásia, nossos morcegos são potenciais reservatórios”, adverte.
“Cada vez que os sistemas naturais sofrem distúrbios, podem interferir fortemente na saúde das populações humanas”, reafirma. O local de descoberta do vírus, sabe-se hoje, pouco importa, pois “está tudo interligado”, salienta o virologista.
“Ebola é nome do rio, zika é o nome da floresta onde foi encontrado o macaco que hospedava o vírus”, cita. Seguindo esse raciocínio, o coronavírus teria sido batizado de wuhan vírus, mas a ciência hoje entende que o lugar onde o patógeno é originalmente identificado é o menos importante. “De tempos em tempos a natureza nos lembra dessa realidade, que fazemos parte dela, uma cadeia global de interações”.