Especialista em reflorestamento, Marcelo Simonelli defende investimento em geração de emprego e renda no campo
Para ações de reflorestamento, um orçamento de apenas R$ 20 milhões em 2024. Para retirar o excesso de turbidez da água que chega às torneiras – provocado pelo desmatamento nas margens e nascentes dos rios –, sucessivas obras, de R$ 64 milhões, R$ 90 milhões…para captar água do mar, R$ 500 milhões.
É nessa tríade matemática pouco inteligente e participativa que tem desaguado a gestão pública do dinheiro necessário para garantir a segurança hídrica dos capixabas: muito pouco no orçamento destinado a ações de reflorestamento e distribuição de renda para o pequeno agricultor e produtor rural, hoje concentradas no Programa Reflorestar; pelo menos sete vezes mais para grandes empresas de engenharia tornarem as Estações de Tratamento de Água (ETAs) capazes de remediar o problema gerado pela falta de reflorestamento; e cifras quase bilionárias para multinacionais que importam técnicas dos lugares mais secos do mundo até um Estado que, como tantos da Mata Atlântica, teve sua riqueza de rios, córregos, lagoas e nascentes historicamente depredada pelo agronegócio, pela mineração e outras atividades industriais de alto impacto socioambiental.
Mas, ao contrário da direção para onde têm apontado as canetas dos gestores, o investimento robusto em reflorestamento, em parceria com a agricultura familiar e camponesa, é a melhor solução quando se pensa em garantir segurança hídrica e, simultaneamente, atender a outras necessidades ambientais e socioeconômicas urgentes, como conservação do solo, segurança alimentar, regulação climática, geração de emprego e renda no campo e conservação da biodiversidade. A conclusão advém de sucessivos estudos técnicos e científicos publicados ao longo das décadas no Brasil e no mundo. Estudos que, afirma o biólogo, mestre em Botânica e professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) Marcelo Simonelli, precisam começar a ser incorporados aos orçamentos públicos no Espírito Santo.
“Hoje já temos cientificamente bem claro o papel desempenhado pelas florestas no ciclo hidrológico e no oferecimento de diversos outros serviços ecossistêmicos como produção de alimentos, extratos, fertilidade do solo e controle de pragas. As árvores têm importante relação não só com a quantidade de água disponível, mas também com a sua qualidade. Portanto, manter o pouco de florestas que ainda nos resta no Espírito Santo e realizarmos reflorestamentos é muito importante para termos segurança hídrica, principalmente no médio e longo prazo, já que um projeto de reflorestamento demora no mínimo uns cinco anos para desempenhar a contento funções como retenção de sedimentos e formação de serapilheira. Essas ações são urgentes”, argumenta o acadêmico.
Outra vantagem do reflorestamento, por meio dos Planos de Recuperação de Áreas Degradadas (PRADs), diz respeito à questão social, acrescenta. “Um plano de recuperação bem planejado em nível estadual poderia gerar milhares de empregos e alternativa de renda em toda a cadeia produtiva da restauração florestal, desde a elaboração de PRADs até a coleta de sementes, produção de mudas, plantio, manutenção e monitoramentos de projetos de reflorestamento. Além da geração de emprego e renda indiretos, com o comércio de insumos e maquinários e também de serviços como alimentação, transporte e comércio em geral, gerando impostos, fixando o homem no campo e proporcionando outros serviços indiretos relacionados à saúde, segurança e qualidade de vida”.
Métodos e zoneamento
Um dos métodos de recuperação é o chamado “plantio total”, em que é preciso preparar o solo, fazer o plantio das sementes e mudas e acompanhar seu crescimento, retirando gramíneas e aplicando nutrientes. Esse é o mais caro dos métodos e, mesmo assim, mais vantajoso, economicamente falando, do que outras formas de produzir água.
“Em relação aos custos, a recuperação de áreas degradadas possui um custo baixo quando comparada a outras tecnologias utilizadas para dar segurança hídrica. Dados do The Nature Conservancy (TNC) estimam que o custo médio, por hectare, pode ser próximo a US$ 2 mil no caso da Amazônia, US$ 2,1 mil para a Mata Atlântica e US$ 3 mil no Cerrado, na técnica de plantio total”.
No caso do Espírito Santo, no entanto, em mais de 60% do território com potencial de recuperação florestal, pode ser aplicado o método mais barato, que é o de Regeneração Natural. O dado conta no estudo “Levantamento do Potencial de Regeneração Natural de Florestas Nativas nas Diferentes Regiões do Estado do Espírito Santo”, lançado em 2021 pela Editora do Ifes (Edifes), que tem Simonelli como um dos autores. “Em alguns casos, basta abandonar a área ou simplesmente cercá-la, para proteger do gado, que rapidamente uma floresta secundária se restabelece”.
A publicação traz um zoneamento do Estado em doze áreas – extremo norte; noroeste; tabuleiro norte; litoral norte; extremo oeste seco; central serrana; transição metropolitana/central serrana; metropolitana; tabuleiro sul/extremo sul baixo; central sul; extremo sul acidentado; sul caparaó – classificadas em um dos quatro níveis de potencial de regeneração natural: alto; transição médio/alto; médio; e Baixo.
Foram mais de 300 áreas amostradas, onde foi avaliado o processo de regeneração em cada uma, o tempo de duração, quais florestas matrizes originaram as sementes transportadas até as áreas degradadas, quanto tempo foi necessário para a regeneração acontecer, em qual estágio (primário, secundário ou avançado) está cada área, e com quais espécies já contam, entre outros parâmetros.
Dessa análise, vários gráficos foram produzidos, com informações comparativas detalhadas a respeito de cada parâmetro. Um dos gráficos mostra, em cada uma das doze zonas, qual o tamanho total, em hectares, das florestas matrizes que subsidiaram as regenerações florestais. A transição serrana/metropolitana e a central serrana se destacam com as maiores áreas de florestas matrizes. Outro dos gráficos mostra o tamanho total de áreas regeneradas em cada microrregião. Neste, sobressaem o tabuleiro norte como o que maior área regenerada, e o litoral norte com a menor.
A realidade da Mata Atlântica capixaba aponta a prioridade dos investimentos em recuperação florestal como medida principal para garantir a segurança hídrica, de forma conciliada com outros benefícios ambientais e socioeconômicos. “A adoção de políticas públicas voltadas para a recuperação da Mata Atlântica do Espírito Santo e o fortalecimento dos programas já existentes, como o programa reflorestar, é de suma importância para aumentarmos a nossa cobertura florestal e, consequentemente, a quantidade e qualidade dos nossos recursos hídricos”, conclama.
Rio Doce
Defesa semelhante foi feita dias antes, na Assembleia Legislativa, pelo engenheiro ambiental e hidrogeologista Henrique Lobo, membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e conselheiro do Instituto Terra. “A situação atual do Rio Doce é que nós temos 80% da bacia hidrográfica com capacidade degradada. Nós perdemos em torno de 140 milhões de toneladas de solo todos os anos para dentro do próprio Rio Doce, que tinha três metros de profundidade em média, na década de 1960, hoje é um rio que tem 90 centímetros de profundidade”, afirmou, na palestra de abertura da Semana de Proteção ao Rio Doce, no dia 18 de março.
“A região teve a maior floresta madeireira que o mundo já viu. Tinha ali 400 espécies de plantas por hectare, espécies moveleiras. Sobraram apenas 8% dessa floresta”, relatou, defendendo que a solução passa principalmente pelo reflorestamento.
Participação social
A importância estratégica do reflorestamento para a segurança hídrica e outros benefícios para a sociedade é ressaltada na edição 2024 da pesquisa nacional “O Retrato da Qualidade da Água nas Bacias Hidrográficas da Mata Atlântica”, realizada pelo programa Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica. Segundo a publicação, menos de 10% dos pontos analisados pela pesquisa indicam qualidade boa da água e, assim como nos últimos anos, nenhum com qualidade ótima.
No Espírito Santo, foram três pontos de coleta, sendo dois em Linhares, pela EEEFM José de Caldas Brito, na Lagoa do Aviso, e pela Linha Verde, na Lagoa do Meio; e um em Domingos Martins, pelo Coletivo Formate. O da Lagoa do Meio foi analisado como ruim. Os demais, como regular.
A ONG destaca o contexto político que aponta os caminhos para mudar essa realidade. “O ano de 2023 foi marcado pela luta, junto ao Congresso Nacional, em prol do reconhecimento do acesso à água limpa como direito humano, da defesa da participação social na gestão e governança da água nos comitês e organismos de bacias hidrográficas e do fortalecimento da Política Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, além de uma grande mobilização contra retrocessos na legislação ambiental brasileira”.
O cenário global, acrescenta, é semelhante. “Eventos como a Conferência da Água da ONU em Nova Iorque geraram a Agenda de Ação da Água, reunindo compromissos de países e organizações, incluindo a Fundação SOS Mata Atlântica, que destacam a importância da participação da sociedade na governança da água e na integração das agendas ambientais. A COP28, em Dubai, foi outro marco importante, com o Brasil reassumindo compromissos internacionais e destacando-se em agendas estratégicas. A SOS Mata Atlântica teve participação ativa, ressaltando a importância da restauração florestal e do combate ao desmatamento para enfrentar desafios climáticos e de segurança hídrica”.
Desmatamento e turbidez
Incrível constatar que, apesar de todo o acúmulo científico recomendando investimentos em reflorestamento e gestão participativa com a sociedade, a recuperação dos rios está longe de ser prioridade do Governo do Estado, mesmo com o reconhecimento, pela própria Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan), que é o desmatamento dos corpos hídricos o motivo da elevada turbidez da água que chega até as Estações de Tratamento de Água (ETAs).
“Parece contraditório, mas quando chove muito, o abastecimento de água para a população pode ser afetado. Isso acontece por causa da grande quantidade de lama e outros detritos que as chuvas levam para o leito dos rios. São as florestas, nos topos dos morros, e as matas ciliares, nos fundos dos vales, que protegem os cursos d’água e impedem que todo esse material chegue ao rio. Porém, como essas áreas estão degradadas, há uma piora expressiva na qualidade da água que a Cesan capta nos períodos de chuva forte, dificultando o tratamento e obrigando a empresa a paralisar estações de tratamento com mais frequência para a lavagem de filtros”, afirmou a companhia em nota publicada no dia 29 de janeiro, em meio a uma das inúmeras suspensões de abastecimento que o município da Serra, o mais populoso do Estado, sofreu neste verão.
Nas planilhas de planejamento de orçamento da empresa, no entanto, não há compromisso com nenhum metro quadrado de reflorestamento. Os investimentos são apenas em complexificação dos processos das ETA, como foi o de R$ 64 milhões em 2023 e, de mais R$ 90 milhões, conforme anúncio feita na última sexta-feira (22).