Os mais velhos ainda se lembram bem. Décadas atrás, o Rio Marinho, que marca a divisa entre Vila Velha e Cariacica, era um espaço de lazer, pesca, coleta de água e transporte por navegação. A instalação de grandes indústrias e ocupação acelerada e desordenada desde os anos 70 diante da omissão ou ineficiência do poder público levaram a uma rápida deterioração daquele que um dia cumpriu a tarefa fundamental de prover água para sustentar a vida nas cidades. Hoje, mesmo moradores de seu entorno, o chamam de “valão”, como tantos outros vistos como fluxo de esgoto.
Perdeu-se a relação com o rio, que tanta nostalgia trazem aos mais velhos, e que deveria ser almejada pelos mais novos. O rio é uma ausência. Já não se vai até ele, senão alguns que insistem em ali despejar lixo como sofás, geladeiras televisões e outros artefatos. Lembra-se dele, ou do “valão”, quando na cheia transborda.
Mas uma recuperação planejada e qualificada do Rio Marinho criaria novos espaços de lazer, preservação do meio ambiente, ajudaria a amenizar as enchentes e ainda valorizaria os imóveis do entorno. Não é apenas utopia. Há várias experiências pelo mundo e também em cidades brasileiras, mesmo as muito urbanizadas como Piracicaba e Jundiaí, no estado de São Paulo. Juliano Motta, mestre em Arquitetura e Urbanismo e morador de Cobilândia, bairro banhado pelo manancial, considera que a obra não é só desejável e possível como de menor complexidade se comparada com outros rios na própria Grande Vitória.
Praticantes de remo no Rio Marinho, em 1913. Foto: Facebook
Juliano lançou em outubro o livro Lembranças do Rio Marinho, publicado pela editora Milfontes, que está sendo distribuído gratuitamente via contato pela fanpage no Facebook. Adaptado de seu projeto de mestrado, traz uma introdução teórica, documentos antigos e principalmente relatos desses moradores que tiveram intensa relação com o rio. Um deles lembrava que antes, com a pesca de subsistência, era comum comer uma moqueca feita com peixe e camarão ali pescados. Mais raro era comer carne, que tinha que ser comprada mercado. Hoje o processo se inverteu.
Havia quem lavava roupas ou buscava água na lata quando ainda não havia água encanada na região. No início do século 20, quando faltava água em Vitória, barcos iam com barris buscar no Rio Marinho o abastecimento. Até 1977 captava-se água ali, depois com a deterioração e o alto custo para tratamento, a coleta passou a ser feita pelo Rio Jucu, conta Juliano. O Rio Formate, também poluído, teve que ser desviado para não desaguar no Jucu, e seu volume de água passou a somar com o do Rio Marinho, aumentando sua vazão.
O dito “progresso” tratou de desviar cursos, retificar, tampar e canalizar rios mundo afora em benefício do modelo de cidade moderna. Já houve até prefeitos que planejaram tampar o Rio Marinho e abrir vias sobre ele, o que é contestado pelos movimentos urbanistas críticos. Na parte que vai da cabeceira da Segunda Ponte até a sede da Polícia Federal em São Torquato, onde deságua no Baía de Vitória, o Marinho foi retificado, tendo seu curso original modificado e sofrendo aterros e alterações paisagísticas com a instalação dos projetos da então Companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale.
Mas no restante, o Marinho segue seu curso original, embora bastante assoreado e estrangulado em muitas partes. Um canal construído nos anos de 1950 para captar água para Vitória segue em paralelo com maior fluxo fluvial. “Hoje, se olharmos bem, é possível recuperar o espaço do Rio Marinho com poucas desapropriações”, indica Juliano Motta. É possível observar isso buscando em imagens como as do Google Maps.
Vista do Rio Marinho na década de 1950, com bairro Cobi e Ponte Preta em segundo plano. Foto: Facebook
O urbanista faz uma sugestão de como se poderia recuperar o rio e devolvê-lo à sociedade, considerando uma ordem de prioridades. Um primeiro passo seria identificar as casas e indústrias que ainda jogam esgoto no Marinho e também no Formate e ligá-las à rede de esgoto. Isso diminuiria a pressão de poluição sobre o rio, e as novas águas viriam limpas. Depois seriam muito bem-vindas obras de infraestrutura para escoamento e bombeamento de água para evitar as enchentes que tanto incomodam e que se devem a condições geográficas de Vila Velha. Também seria necessário um trabalho de desassoreamento e recomposição da mata ciliar para proteger o rio, incluindo algumas desapropriações.
Por fim, uma intervenção urbana, que poderia converter o entorno em um parque linear, como já existe em muitas grandes cidades, tornando o rio um espaço central e frequentado da cidade, assim como são as praias, o que contribui para valorização dos imóveis do entorno e especialmente com a melhoria da saúde, física e mental da população, que teria um espaço para prática de exercícios, interação comunitária e contato com a natureza.
Certamente seria um investimento custoso e de longo prazo, mas cujos retornos muito provavelmente seriam de um montante ainda maior. “Tem estudos que mostram que, por exemplo, para cada R$ 1 investido em saneamento, economiza-se R$ 4 em saúde”, aponta o mestre em Arquitetura e Urbanismo. Fora a qualidade de vida e bem-estar acrescentada à população, que não pode ser medida em termos econômicos. “Do ponto de vista urbanístico, seria assumi-lo como um rio urbano e integrá-lo à cidade e não deixar esquecido como geralmente se faz. Integrar para dentro da cidade, como elemento de paisagem principal, para que possa ter importância e a beira do rio seja frequentada, assim como se busca a beira do mar”, destaca Juliano Motta.
O Rio Marinho limpo e revitalizado já foi reivindicado pelas comunidades do entorno, com caminhadas ecológicas, histórias em quadrinhos e outras atividades. Mas pouco foi feito.
Não se trata apenas de incompetência das autoridades locais, mas de um processo histórico e mundial de uma visão de progresso que desconsiderou a centralidade do meio ambiente, visto por vezes como empecilho para o desenvolvimento e não como parte fundamental para reprodução da vida em todas sua amplitude. Mas em alguns lugares, o poder público já despertou e começou a tentar reverter esses processos. Não há como retomar o antigo Rio Marinho, pois as águas fluem e os territórios se modificam. Mas, sim, é possível construir uma outra realidade para o Marinho e outros rios, que alguns defendem como sujeitos de direitos, que devem ser respeitados em seus fluxos, ciclos e em sua integralidade.
Tem um dito que fala: “Tomar água nos dará vida. Tomar consciência nos dará água”.