Doutor em Biologia Evolutiva defende soluções para o trecho da BR 101 que corta a Reserva Biológica de Sooretama
Em tempos pandêmicos, nunca foi tão urgente pautar o planejamento das atividades humanas sob a perspectiva da proteção da floresta. Estudos sobre o montante necessário de investimentos em pesquisa e conservação ambiental, por parte das nações mais ricas do mundo, mostram que bilhões de dólares aplicados anualmente equivalem a fatias ínfimas dos orçamentos militares de nações tradicionalmente beligerantes, como os Estados Unidos, e dos custos da atual pandemia de Covid-19 ao conjunto dos países.
Quanto tempo levará para que esses estudos se tornem políticas públicas globais, nacionais, estaduais? Quantas milhões de pessoas a mais o novo coronavírus terá que ceifar? Quantas novas pandemias terão que surgir? Quanto sofrimento a mais a humanidade e o planeta precisa atravessar?
No Espírito Santo, um caso emblemático mostra que muito discernimento ainda precisa ser despertado entre os gestores públicos, os líderes dos grandes conglomerados empresariais e a sociedade civil. No processo de licenciamento da duplicação da BR 101, que corta o Estado de norte a sul com seus mais de 460 km, a concessionária vencedora da licitação se recusa a prover uma solução sensata para proteger a Reserva Biológica (Rebio) de Sooretama.
Pois eis o paradoxo insustentável: no projeto de duplicação da rodovia apresentado pela Eco 101 não há previsão de medidas que de fato assegurem a proteção desse tesouro natural, de importância fundamental não só para o Espírito Santo e o Brasil, mas para o mundo. A falha foi evidenciada após iniciado o processo de licenciamento no ambiental junto ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas, passados sete anos, não foi possível chegar a um consenso. As soluções técnicas apontadas pelo Ibama e por cientistas não são aceitas pela concessionária.
Para isso, elenca, “é preciso planejar melhor o modal rodoviário do Estado, removendo os grandes vetores rodoviários de áreas prioritárias para a manutenção da biodiversidade e serviços ecossistêmicos”. O ideal, aponta, “é transferi-los para áreas degradadas e economicamente pobres, onde esses vetores poderão inclusive gerar oportunidades para recuperar e desenvolver a economia da região”.
Já nas áreas prioritárias para conservação, deve-se privilegiar estradas menores, voltadas à mobilidade das comunidades, escoamento da produção local e o turismo agrícola e de contemplação a natureza, contexto em que se encaixam perfeitamente as chamadas estradas-parque, que já existem no país em alguma bem-sucedidas iniciativas. “Com toda a certeza, a BR-101 é o pior caminho para Sooretama”, afirma, principalmente uma BR-101 duplicada no trecho que corta a reserva.
“Terra dos Animais da Floresta”
O nome, lembra Áureo Banhos, remete à “Terra dos Animais da Floresta”, como se traduz, da língua tupi, a palavra Sooretama. Numa publicação em rede social, o cientista conta sucintamente a história do surgimento da Rebio, que é anterior à instalação da estrada, na década de 1960. Após a inauguração da ponte sobre o Rio Doce, em Colatina, em 1923, diversos ambientalistas e pesquisadores do porte de Augusto Ruschi, Patrono da Ecologia do Brasil, e Álvaro Aguirre, se dedicaram a criar mecanismos de proteção para a densa floresta que cobria o norte do Espírito Santo, sendo dessa época os estudos que embasariam a criação de muitas outras unidades de conservação no Estado.
Na década de 1940, duas unidades de conservação criadas a partir desses estudos, o Parque de Reserva, Refúgio e Criação de Animais Silvestres Sooretama (transformado em Reserva Biológica em 1969) e o Parque Estadual Barra Seca, seriam unidas em 1971 ampliando a área da Rebio Sooretama.
Desde a década de 1940, a legislação não permitia que uma rodovia cortasse o coração da floresta. “Essa rodovia causa uma alta mortandade de animais atropelados, não somente de médios e grandes vertebrados terrestres ameaçados de extinção, como onças e antas, mas também de animais arborícolas, como macacos e preguiças, e inclusive animais voadores, como a maior águia do mundo, a harpia”, ressalta Áureo Banhos.
Na Reserva de Sooretama, conta, foi registrada a maior diversidade de morcegos vítimas de atropelamentos no mundo. “É um passivo impossível de evitar, qualquer que seja a medida de mitigação feita no eixo dessa rodovia no interior da Reserva Biológica de Sooretama”, assinala.
Mas os atropelamentos, explica, são uma parte dos problemas, que vão além e incluem, principalmente, a perda de habitat para a biodiversidade, e a poluição promovida pela rodovia (restos da estrutura da própria estrada, resíduos de combustíveis e da carga química transportada pelos veículos, lixo, guimbas de cigarros e faíscas dos veículos, ruído do tráfego). Problemas, salienta, que afetam a biodiversidade por quilômetros de distância na floresta a partir da estrada.
“No meu ponto de vista, o principal problema é que esse tipo de empreendimento é um vetor de ocupação humana na paisagem, incluindo o estabelecimento de outros empreendimentos e até outras estradas, potencializando todos os outros problemas, concorrendo pelos recursos naturais e rivalizando com a proteção da reserva”, afirma, citando a redução da água para a biodiversidade, o favorecimento ao desmatamento, à caça e às queimadas, o uso de agrotóxicos no ambiente, a poluição industrial e o lançando efluentes domésticos urbanos. “Uma situação impossível de controlar”, acentua.
Um exemplo inquestionável desse enredo, salienta, é o surgimento do município batizado com o mesmo nome da Reserva, anteriormente apenas um pequeno distrito de Linhares, fato ocorrido, certamente, devido à intensificação da ocupação humana proporcionada pela BR-101. “A região agrícola cresceu e se emancipou se beneficiando dos serviços ambientais prestados pela proteção das reservas, mas o crescimento acelerado da região impacta negativamente a prestação desses próprios serviços”, expõe.
A duplicação da estrada, sentencia, só irá piorar a vulnerabilidade da reserva, que poderá não ser mais “a terra dos animais da floresta. “Estamos sobre ombros de gigantes que, por esses atos no passado, nos permitiram hoje conhecer uma amostra do que era biodiversidade de toda a região. E só nos resta agora garantir que as gerações futuras também possam se beneficiar desse legado. Mas a rodovia BR-101 definitivamente não é o caminho para isso”, adverte.