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‘É vergonhoso. A gente passar necessidade e até hoje não ter recebido um real’

É mesmo vergonhosa a atuação da Samarco, da Vale e da BHP Billiton, e de sua Fundação Renova, junto aos atingidos pelo maior crime da história da mineração mundial. A situação da família de Ilson José Engelhardt, produtora de cacau em Colatina, noroeste do Estado, é um dos tristes exemplos de falta de legalidade dessas empresas e de humanidade por parte de seus gestores, fartamente remunerados para chancelarem, com seus currículos, decisões absolutamente vazias de respaldo legal e ético e que contrariam até mesmo as diretrizes da frágil governança montada para, teoricamente, executar as medidas de reparação e compensação dos danos socioambientais advindos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, que devastou o Rio Doce com mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração.

Já se passaram quatro anos e, até agora, estão sem receber o auxílio financeiro emergencial (AFE) e as indenizações por danos materiais, morais e lucro-cessante milhares de pessoas, segundo os órgãos de Justiça que apoiam os direitos dos atingidos e a consultoria Ramboll, contratada pelo Ministério Público Federal (MPF). Para organizações da sociedade civil como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), essas vítimas não reconhecidas ou indenizadas estão na casa dos milhões. 

Nesse universo de injustiça e impunidade, está a família de Ilson José Engelhardt, que perdeu mais de 60 mil pés de cacau em sua propriedade em Colatina, já reconhecida como atingida (na foto à esquerda, o cacau antes da lama). “É vergonhoso. A gente passando necessidade e até hoje não recebeu um real”, revolta-se o cacauicultor. 

“Quando a lama entrou, onde ela chegou os frutos já apodreceram. A gente achou que na próxima florada ia ser normal, a planta conseguiria se recuperar”, diz. Mas no ano seguinte, além do cacau morrer, a própria floresta se mostra definhando também. “Estão morrendo árvores centenárias, sapucaia, pau d' alho. E nunca morreram antes”, conta.

Dentro da propriedade da família passa uma vazante da lagoa do Limão, a segunda maior de Linhares, município vizinho à propriedade. Depois de atravessar o cacaueiro dos Engelhardt, a vazante deságua no Rio Doce. 

Quando a lama chegou ao Espírito Santo, a comunicação entre a lagoa e o Rio Doce foi fechada para evitar a contaminação do complexo lacustre, operação semelhante à feita em outras lagoas da região, que ainda estão isoladas do grande rio, o que lhes salvaguarda da lama, mas impede o fluxo hídrico, a reprodução dos peixes e já provoca sérios problemas. 

Uma enxurrada no início de 2016, no entanto, arrebentou a pequena barragem e contaminou toda a propriedade. “Entrou tudo na nossa lavoura. Inundou em torno de um metro a um metro e meio”, lembra Ilson.

Quando a enxurrada baixou, somente a água voltou para o Doce, mas a lama decantou na terra. “Está lá, concentrada”, lamenta. “Limpamos toda a roça pra ver se na próxima florada ia vingar. A florada seguinte veio, os frutos cresceram, mas quando chegavam num ponto de uns dez, oito centímetros, iam morrendo. Antes de amadurecer, morria tudo”, descreve (na foto acima, a lavoura depois da lama)

Contratada pela Fundação Renova, a empresa Sinergia afirmou, em seu laudo, que 40 hectares estão aptos para produção e apenas quatro deveriam ser indenizados. 

Diante do absurdo cálculo, a família entrou na Justiça e fez outros laudos que comprovaram a destruição de toda a propriedade. “O agrônomo disse que não dá pra saber quanto tempo essa terra vai ficar improdutiva. Seria em torno de dez anos, mas não poderia garantir”, diz. “Com o tempo absorve, mas não há estudos pra dizer se a terra vai voltar ao que era”. 

As plantas, porém, precisam ser todas arrancadas, estão condenadas. Mais de 40 hectares, 60 mil pés de cacau e milhares e milhares de árvores nativas, que fazem o sombreamento necessário ao cacaueiro plantado no tradicional sistema de “cabruca”. 

“Poderia resolver jogar gesso, que puxaria a lama pro fundo da terra, mas não sabe se resolveria ou agravaria o problema. É uma coisa que a gente nunca viu. Tem que deixar a terra absorver e observar o comportamento da terra”. 

Sem cacau e sem café – o cafezal em São Gabriel da Palha também foi aniquilado, mas pela seca – a família não consegue arcar com o financiamento bancário e nem mesmo com as despesas do dia a dia. “Estamos passando por necessidades básicas. Com nome negativado, você é nada no Brasil e eles não querem saber. Hoje a gente sobrevive vendendo queijo de porta em porta. É a única forma de sustento da nossa família”, suplica. 

A primeira audiência de conciliação do processo, ajuizado em meados de 2016, está agendada para o próximo dia 20. A própria Sinergia esteve na propriedade no dia 31 de outubro e, informalmente, disse à família que a situação realmente piorou. Mas, considerando o histórico de atuação judicial da Samarco no caso do Rio Doce, difícil acreditar que essa verdade é que servirá de base para a negociação que a empresa criminosa irá propor perante o juiz. Seja como for, que a Justiça seja feita e reverbere para os demais milhares – ou milhões – de atingidos ainda desamparados. 

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