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‘Educação não é gasto, é investimento’, bradam famílias em Governador Lindenberg

Crianças pequenas, muitas com seis anos de idade, viajando diariamente em ônibus e estradas em más condições de conservação, muitas vezes sem um cuidador no veículo e ocasionalmente com superlotação, e que simplesmente não transita em épocas de chuvas, fazendo com que os alunos percam parte considerável do ano letivo. Crianças pequenas, afastadas de suas comunidades, sendo desterritorializadas, chegando cansadas e desestimuladas para o dia a dia de estudante, numa fase ainda tão tenra da infância. 

É esse o plano em curso pelos governos federal, estaduais e municipais do Brasil e do Espírito Santo há mais de uma década. Um plano traçado a partir de números frios, que veem as escolas do campo apenas como estruturas sem importância e não o coração da comunidade, como é bem sentido e vivido pelas próprias; que veem no pequeno número de alunos – algumas vezes cinco, dez crianças de séries variadas – apenas números; que veem o campo como sinônimo de atraso, como lugar para ser ocupado por grandes fazendas e seus maquinários e monocultivos e toneladas de agrotóxicos, expulsando as pessoas para as periferias caóticas das cidades, onde se tornam massa de exploração e mão de obra barata. 

Esse é o plano do Estado, que já fechou milhares de escolas no país, sendo mais de 500 apenas no Espírito Santo, entre 2008 e 2018. Mas as comunidades existem, resistem, lutam e conquistam, de tempos em tempos, importantes vitórias em favor da vida, da justiça social, da sustentabilidade ambiental e econômica do campo e da cidade. 

“Educação não é gasto, é investimento”, bradam as comunidades do campo, responsáveis por 70% do alimento que chega às famílias capixabas e pela maior parte dos empregos gerados no meio rural. E esse é o grito de luta entoado nesse início de 2020 em Governador Lindenberg, município de 12,7 mil habitantes localizado no centro-oeste do Estado. Lá, na última semana, o prefeito, Geraldo Loss (PSDB), comunicou a intenção de fechar quatro escolas do campo, distribuindo seus alunos em outras três escolas-núcleo. A alegação foi um parecer do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES). 

O anúncio foi feito em quatro reuniões públicas, onde membros da Secretaria Municipal de Educação comunicaram que a exigência feita pelo TCE-ES é de que sejam nucleadas as escolas com distâncias menores que 3 km entre si e que ofereçam as mesmas séries do ensino fundamental. 

A medida pretende levar os alunos da EUMEF Córrego Doutor Benvindo para a PEM e EMEIEF São João de Novo Brasil; os alunos da EUMEF Córrego Baia para a EMEF Belizário Gusmão; e os alunos da EUMEF Alto Moacir e da EUMEF Córrego Paraná para a EUMEF Fazenda Irmãos Bernabé e PEM Cirandinha.

Familiares dos alunos e professores de Educação do Campo estão unidos para defender as unidades escolares ameaçadas, estudando o parecer do TCE-ES, revisando a legislação e procurando diálogo com o Município em busca de outras soluções. 

Um dos questionamentos foi feito pela educadora Maria Geovana Melim Ferreira, conselheira do Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces). “O relatório [do TCE-ES] critica os municípios que têm escolas próximas que oferecem a mesma etapa de ensino em até 3 km de distância, que é calculada em linha reta.

Esse ponto, temos que apontar as limitações: não consideram rota de transporte, distância viária, nem relevo e geografia. Entendo que o tempo de deslocamento e as condições viárias devam ser apontadas [pela comunidade]”, explana a conselheira.

“A prefeitura precisa arrumar as contas, a folha de pagamento, mas entre cortar os cargos comissionados e os professores que entraram por processo seletivo, preferem cortar no mais relevante, a educação”, critica Mateus Fornaciari, filósofo e professor de Educação do Campo, morador de Governador Lindenberg e participante do Comeces. 

A lei, lembra o Mateus, deixa claro que fechar escolas é crime se não forem cumpridos os procedimentos, que envolvem reunião com a comunidade, onde ela dá o aval para o fechamento. “Mas a lei não especifica como deve se dar o aval, quantos votos são necessários etc.”, diz. 

O que é certo, apontam os educadores e familiares, são os impactos negativos que o fechamento de quatro escolas provocará na vida das comunidades. “As dificuldades são muitas: o deslocamento das crianças, perda da identidade da comunidade e sua história. A escola é a alma da comunidade e, é por isso que devemos lutar para que não feche”, declara uma mãe, que não quer se identificar. 

O receio de se expor é muito grande nessas situações, pois as comunidades se veem como de fato estão, num primeiro momento: acuadas, sem direito real à fala, à contestação, a fazer valer seus direitos e necessidades. 

“Com o fechamento das escolas, os estudantes terão muitos problemas com relação a transporte. No interior, relevo muito acidentado, em períodos chuvosos é muito instável a locomoção”, ressalta Mateus. “A violência no Campo começa com as portas de uma Escola fechada”, entoa, ecoando a súplica das comunidades ameaçadas em seu município. 

Mas, se no início do processo o medo se instala entre as comunidades escolares, a união de todos consegue reverter esse sentimento. “Comunidades unidas e organizadas têm conseguido conter o fechamento de escolas, turmas, turnos e conselhos escolares em todo o país”, asseveram conselheiros do Comeces, em um documento elaborado em 2018, com objetivo de subsidiar as comunidades do campo com informações e dicas de como defender suas escolas.

O extenso documento situa as escolas no contexto da luta pela qualidade de vida no meio rural. “Educação do Campo é uma proposta educacional vivida e sistematizada pelos movimentos sociais camponeses do Brasil com o objetivo de construir uma escola voltada para os interesses e lutas dos(as) trabalhadores(as) do campo. Sinteticamente, os principais interesses e lutas dos(as) trabalhadores(as) do campo são os seguintes: direito de continuar vivendo no campo de modo digno, reforma agrária, fortalecimento do modelo camponês de produção com base na agroecologia, superação de todas as formas de exploração, discriminação e exclusão, democracia participativa”, sintetizam os conselheiros. 

O documento também aborda a Pedagogia da Alternância, explicando a dinâmica do Tempo Escola e Tempo Comunidade, que permite aos alunos estabelecerem trocas de conhecimento entre a comunidade e a escola, em que ambas se fortalecem. 

“O Tempo Escola (TE), ou sessão, é o momento em que os(as) estudantes se encontram na aula com seus professores e colegas para dialogar e refletir sobre a realidade em que vivem, a partir das informações levantadas a respeito da vida natural, econômica, cultural, social e política das suas comunidades. O Tempo Comunidade (TC), ou estadia, é o momento em que os(as) estudantes realizam atividades de pesquisa, reflexão e intervenção junto às suas comunidades, a partir das aprendizagens que desenvolveram no TE. No TC, os(as) educadores(as) vão ao encontro dos(as) estudantes, aproximando-se de suas famílias e acompanhando-os(as) na realização de suas tarefas”, explicam. “A teoria serve para refletir sobre a prática, e a prática se reconstrói a partir da teoria, que também se refaz, em um processo permanente de transformação do sujeito e da realidade social”, enfatizam.

O documento também apresenta argumentos legais e pedagógicos que contestam alguns dos principais mitos (ou “narrativas inverídicas”) utilizados nas argumentações do Estado para impor o fechamento de escolas. Entre eles, está o de que “convívio restrito entre crianças de uma mesma comunidade limita suas experiências de vida”. 

Muito contrariamente, os educadores explicam que, “especialmente na infância, a convivência com a família e amigos dá segurança aos pequenos. Escolas nas comunidades são muito mais sensíveis às necessidades, interesses, culturas e projetos dos estudantes daquele local, e podem viabilizar uma pedagogia muito mais significativa. Conhecendo essa realidade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei federal nº 8.069/90) define no inciso V do art. 53, que a eles seja assegurado o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Na mesma direção, o Plano Nacional de Educação estabelece a limitação da nucleação de escolas e o deslocamento de crianças de educação infantil e estimula a oferta de ensino fundamental, em especial nos anos iniciais, nas próprias comunidades do campo, indígenas e quilombolas”. 

“A escola do campo assume um importante papel de fomento da vida cidadã por ser, muitas vezes, o único equipamento público que agrega pessoas em torno de questões comuns em prol do desenvolvimento da comunidade”, ressaltam os especialistas.

Entre as orientações de mobilização, está a realização de reuniões amplas com diversos setores da comunidade – escola, igrejas, associações – a busca de diálogo com o Poder Público, o acionamento do Ministério Público. Unidos e respaldados pela lei e pelo bom senso, muitas lutas foram vitoriosas ao longo desses anos. 

A gestão do governador Renato Casagrande (PSB) reativou um diálogo com o Comeces, no primeiro ano da atual gestão, o que animou os conselheiros e educadores. Que esse aceno se transforme em alimento para fortalecer a luta de Governador Lindenberg e outras localidades do Estado. 

 

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