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Em busca da Terra Sem Males

Depois da luta pela demarcação da terra, nova aldeia se distancia do urbano para manter modo de vida Guarani

Ka’agwy Porã é traduzido do guarani como “floresta bonita”. Esse é o nome dado à quinta aldeia construída pelo povo Guarani em Aracruz, litoral norte do Espírito Santo, onde se estabeleceu a partir da década de 1960, depois de uma longa peregrinação desde o Rio Grande do Sul, sob o comando de uma grande líder chamada Tatantxin Ywá Reté. Ali os Guarani foram acolhidos no território onde viviam e ainda vivem povos Tupiniquim, conformando hoje no município o Território Indígena Tupinikim e Guarani, único demarcado no Espírito Santo.

Divulgação

Cinco gerações depois, no último dia 15 de março nasceu Luã Txunū, tataraneto de Tatantxin, já na nova aldeia, e busca se aproximar do sonho guarani da Terra Sem Males (Yvy marã e´ỹ), um lugar sem guerras, fome ou doença. Se bem esta seja uma ideia complexa por estar diretamente ligada à espiritualidade e forma de ser e ver o mundo deste povo, a Ka’agwy Porã surgiu buscando ser exatamente um refúgio, se instalando mais afastado do meio urbano e da rodovia do que a maioria das outras aldeias Guarani e Tupinikim existentes no município. Em português, a aldeia é chamada de Nova Esperança.

É justamente essa distância da cidade que tem atraído novas famílias. Já são 49 famílias e mais quatro estão por chegar, diz o cacique Werá Djekupé, também conhecido como Marcelo Guarani, que explica no vídeo abaixo sobre a construção do pau-de-chuva, instrumento musical tradicional. Ao todo, são mais de 200 moradores, o que a torna uma das maiores dentre as aldeias Guarani no Estado. A maioria são agricultores e artesãos, que necessitam estar diariamente no meio urbano por conta de trabalho. “Nossa ideia é proteger esse lugar, para se sentir bem. É um espaço propício para a reprodução física e cultural da cultura guarani, que tem tradição de plantio e de pesca”, explica Marcelo.

Esse novo espaço só foi possível graças à uma luta aguerrida entre 2005 e 2006 que uniu aldeias Tupinikim e Guarani e apoiadores de diversos outros movimentos, coletivos, ONGs, parlamentares, juristas e outros em torno da retomada e demarcação de uma área total de 11 mil hectares que havia sido apropriada para o plantio de eucalipto pela então Aracruz Celulose, que hoje faz parte da Suzano. Por conta de todos trâmites, a demarcação saiu oficialmente apenas em 2010.

Nessa época, Marcelo e outras pessoas que moravam em outras aldeias guarani já estavam de olho no local onde foi criada a Ka’agwy Porã. “Tem bastante espaço para plantar, não precisa fazer derrubada de mata, é só aproveitar lugares que não tem mais árvore e aproveitar para fazer roça. Eu falo para a comunidade: mede sua roça, porque a partir daí o espaço que estiver liberado a gente vai reflorestar tudo, para ter mais água, árvores frutíferas e nativas, sombreamento, ter um clima legal”, diz o cacique. Já foram cerca de 10 hectares reflorestados, mas o plano é passar de 90. “Assim a gente vai ajudar os animais, os indígenas, e o ser humano como um todo vai ser beneficiado, pensando no clima do mundo”.

Depois de décadas de plantio de eucalipto, com uso de agrotóxicos, o território foi devolvido como terra arrasada, restando tocos de eucalipto em algumas partes, mas também com duas pequenas áreas de reserva natural, incluindo a presença de nascente e corpos d’água. Em 2014 começaram os primeiros mutirões e em 2015 já havia famílias instaladas com suas casas.

Depois, foi construída uma Opy, ou Casa de Reza, espaço fundamental na manutenção da cultura e espiritualidade Guarani, muito marcadas pela oralidade. “Ali é como se fosse escola e também igreja. Ali começa a se ensinar os princípios. A criança aprende a cantar, fazer suas orações, aprende a entender o mundo a partir do contato espiritual. É muito importante, aprende teoria e depois a prática, que fica a cargo do pai e da mãe”, conta Marcelo Guarani. Também é um local de cura, física e espiritual, questões que o cacique considera que estão intrinsecamente ligados. 

Núcleo Audiovisual Reikwaapa

A comunidade também já possui um local para atendimento de saúde, com médicos que vêm periodicamente. A escola fica em outra aldeia Guarani, porém mais recentemente, tem sido possível educação por professores indígenas, o que Werá Djekupé considera um avanço. As crianças, assim como os adultos, são nativos em língua guarani, sendo que geralmente têm acesso ao português a partir da escola, um aprendizado que era mais difícil quando vindo de professores não falantes de Guarani.

Um dos professores é o filho de Marcelo, o jovem Mayño Cunha, pai de Luã Txunū, nascido na Ka’agwy Porã, e de Maya, de cinco anos, que vem crescendo na aldeia na nova casa construída por seu pai e sua mãe, Jéssica Martinelli.

Mayño termina em 2022 a graduação na primeira turma da Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que no início selecionou 70 Tupinikim e Guarani, alguns professores atuantes e outros jovens recém egressos do Ensino Médio, para a formação, fortalecendo a educação própria nas comunidades, considerando as especificidades dos povos indígenas. Ele conta com orgulho que passou em primeiro lugar em sua categoria tendo escrito a prova de seleção para a Ufes em língua Guarani.

Além dos estudos, ele também coordena dentro da comunidade o núcleo audiovisual Reikwaapa, formado por cerca de 10 jovens da aldeia, que contaram com apoio e impulso do cineasta Ricardo Sá e de Werá Djekupé para conseguir equipamentos e formação para estruturar a produção de vídeos, filmes e fotografias retratando a realidade de seu povo a partir de seu próprio olhar. “Tenho essa sensação e vontade de fortalecer a história e o registro da memória de meu povo e de contribuir para a sociedade nos reconhecer como realmente somos e não com a visão colonial que muitas vezes é empregada sobre nós”, relata o jovem.

Mayño Cunha durante a construção de sua casa na aldeia Ka’agwy Porã

Ele considera que por muito tempo as histórias escritas e os relatos audiovisuais sobre seu povo foi feita por pessoas que não pertenciam ao cotidiano da comunidade. Agora a situação vem mudando e os guarani tem se apropriado tanto de meios acadêmicos como tecnológicos. Como sua cultura é baseada na oralidade, Mayño observa que o audiovisual tem sido muito bem aceito nas comunidades, inclusive entre os mais antigos.

Além do núcleo audiovisual, a aldeia também possui seu coral, algo bastante comum nas comunidades Guarani, que foi sendo formado com a chegada de pessoas de outras aldeias da região que faziam parte dos corais delas. Um grupo de mulheres também vem sendo fortalecido, contribuindo para maior organização delas em torno de questões diversas, entre elas a produção e comercialização do artesanato local.

Desde o início, Marcelo sonha em ter ali um local de recepção e de apresentação sobre a história e cultura de seu povo. Onde se possa contar sobre a cosmovisão e espiritualidade guarani, sobre a caminhada liderada por Tatantxin até aquela região, e onde se reúna fotos, imagens, documentos, artefatos e outros materiais que ajudem a contar essa história. Ainda pensa em instalar um hostel, alternativa de hospedagem coletiva, para receber pessoas ou grupos interessados em vivenciar um pouco do cotidiano da aldeia.

Demarcação abriu novos horizontes

Mayño tem plena convicção de que nada disso que vem acontecendo seria possível se não fosse a luta pela demarcação, que ocorreu quando tinha cerca de seis anos de idade e seu pai participou ativamente como um dos caciques que lideraram o processo de luta.

“Nós que somos indígenas temos um modo de vida diferente e precisamos de espaço para continuar fortalecendo nossa cultura. Desde o processo de colonização perdemos muita coisa devido a todas essas agressões e impactos negativos que vieram. Nos voltamos para outros hábitos, interferiram no nosso modo de vivência. Sem demarcação, com grandes empreendimentos em volta, as comunidade indígenas vão perdendo oportunidade de praticar seu modo de vida, perdendo sua língua, cultura e identidade”, diz Mayño, que lembra dos parentes guarani que vivem em estado como Paraná e Mato Grosso sem terras demarcadas, praticamente acampados à margem de rodovias, sem direitos básicos nem condições de reproduzir seu modo de vida tradicional.

Para ele, a terra é condição para autonomia, subsistência e continuidade de existência como povo tradicional e originário. Na cosmologia da Terra Sem Males, explica, há o entendimento de que essa terra não é apenas física mas, também espiritual. “A terra não tem dono. Nós temos o direito a viver nessas terras, mas daqui a gente não leva nada, nem terra, nem tudo que a gente conseguir, como dinheiro”. A terra não é herança dos ancestrais, como dizia um conhecido dito, mas um empréstimo que fazemos das gerações futuras, que ainda virão para desfrutar dela.

Nova aldeia em área de retomada contribui na conservação da natureza e do modo de vida gurani. Foto: Ligia Sancio

“Eu tenho um sentimento de gratidão a todas essas lideranças que lutaram pela demarcação, que hoje são muitas delas já idosas, outras já se foram. Então tenho esse sentimento de gratidão e de poder retribuir isso para continuar fortalecendo e assegurando nossa cultura e modo de vida”, considera.

Ele tem certeza que, sem demarcação, não haveria núcleo audiovisual, nem agroflorestal e outros projetos que vêm sendo implantados nesta e em outras áreas retomadas. Porque as necessidades seriam outras, a luta pela sobrevivência, por espaço, por alimento, outras demandas urgentes que o acesso à terra e território permitiram suprir de alguma maneira e pensar em outras coisas.

“Na época da demarcação eu tinha uns seis ou sete anos e não tinha total dimensão da proporção do movimento”, conta Mayño, que lembra de alguns momentos. O mais duro foi uma ação policial que destruiu a aldeia Olho D’Água, uma retomada que vinha sendo erguida dentro desse processo de luta pelo território. O forte operativo policial deixou muitos feridos mas não arrefeceu a luta. Olho D’Água foi reconstruída e tornou-se quarta aldeia guarani, assim como Amarelos, na proximidade, foi outra nova aldeia na área remarcada, com caráter pluriétnico, incluindo moradores Tupinikim e Guarani.

A relativa tranquilidade que prevalece nessas aldeias, entretanto, ainda não é total. Além de viverem cercados de grandes empreendimentos industriais que podem causar impactos diversos, existe o receio em relação ao projeto do Marco Temporal, que permitiria rever as demarcações feitas após a Constituição de 1988, o que incluiria toda área reconhecida em 2010 e boa parte do Território Tupinikim e Guarani. As comunidades de Aracruz já se manifestaram algumas vezes no próprio município e também em Brasília nas mobilizações nacionais dos povos originários.

Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não termina o julgamento do Marco Temporal, a comunidade segue com sua nova esperança na reconstrução da floresta bonita. Ka’agwy Porã. 

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