Há um conjunto de ameaças que o atual modelo econômico, tanto do campo como da cidade, expõe à população. O agronegócio se mantém em 76% dos territórios agricultáveis do país, uma porcentagem contraditória se comparada ao que produz, apenas 30% da comida, e à mão de obra ocupada, que equivale a apenas 26% dos trabalhadores do campo. Esse modelo de cultivo também é responsável pela contaminação do solo, dos alimentos, da água e do ar, com os agrotóxicos e a destruição de florestas e mananciais para que sejam implantadas as grandes áreas de monocultivos dedicados à exportação.
Os alertas são de Dorizete Cosme, liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que esteve presente no Seminário “Alimentar o mundo, cuidar do planeta”, que aconteceu nesta terça-feira (14), em Vitória. O evento é organizado na semana em que se comemora o Dia Internacional da Soberania Alimentar, que acontece na próxima quinta-feira (16), pela Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), por intermédio do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsea).
Na mesa de abertura, estiveram presentes a secretária municipal de assistência social, Clarice Machado Imperial; a subsecretária municipal de segurança alimentar e nutricional, Antonia Jeane Alves Souza; o presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), professor Pedro Makumbundo Kitoko; a presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsea VII), Maria Geralda do Carmo Lima, conhecida como Neném; e os representantes da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan-ES), Marilene Rodrigues Cristo; do MPA, Dorizete Cosme; e da Federação das Associações de Moradores e Movimentos Populares do Estado (Famopes), Marcos dos Santos.
Os componentes da mesa de abertura foram unânimes em afirmar que a adoção de estratégias para o fortalecimento da agricltura familiar e camponesa, tais como a adesão do Estado ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), foram de extrema importância para que o Brasil saísse do mapa da fome, conforme se comprovou em recente mapeamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). “A fome não deixou de existir no Brasil. O que aconteceu foi que a FAO reconheceu a grande redução nas dimensões do problema”, explicou o professor Kitoko.
“Nós não nos esquecemos da alimentação, não nos esquecemos de comer. Mas esquecemos politicamente da alimentação. Nas grandes cidades, não há políticas estruturadas para a promoção da alimentação saudável”, ressaltou. “O Brasil está ‘marcando um golaço’, acabar com a fome não é fácil. O Brasil era conhecido, no mundo todo, como o país do futebol e da fome. Essa era a nossa realidade”, revelou. Por fim, o professor considerou que o trabalho pela erradicação da fome não teria nenhum resultado se os agricultores familiares tivessem parado de trabalhar, já que são eles que estão inseridos diariamente nos lares de todo o país, por meio dos alimentos que produzem.
Consequências
“Sem semente não há produção, sem produção não há alimento, e sem alimento não há humanidade”, retratou Leomar Lírio, outra liderança do MPA convidada a palestrar após a abertura do evento. Tomando como base o lema, Leomar explicou que há vários desafios para que seja alcançada a soberania alimentar no Brasil.
Primeiramente, alerta para as sementes transgênicas, que têm seu tempo de maturação, produção e colheita programados, sem que sua própria produção possa servir de base, futuramente, para uma nova lavoura. Essa programação tira do pequeno agricultor a autonomia sobre o próprio plantio e os resultados das próprias sementes.
Além disso, a alta mecanização da produção, fator que diminui os empregos gerados no campo, e os grandes monocultivos, que pela falta de variedade plantada empobrecem a terra, contribuem para que o modelo agrícola adotado no Brasil seja completamente insustentável.
Resultado disso são as consequências ambientais, humanas, socioeconômicas e culturais, que afligem sobretudo as pequenas populações e os povos tradicionais. Estes têm seus próprios hábitos alimentares, que são impactados quando há uma uniformização no produto que lhes é oferecido, padronizando a alimentação e impedindo que a cultura alimentar seja passada adiante. A água e o ar são contaminados pelos agrotóxicos e não conseguem empregos devido à alta mecanização da produção. Como consequência disso, está a extinção de comunidades camponesas e tradicionais, como retratou Leomar.
As consequências ambientais se referem, sobretudo, ao desmatamento provocado para dar lugar às lavouras e pela contaminação dos recursos naturais com os químicos agrícolas. Do ponto de vista social e econômico, a concentração da produção de alimentos em polos pode provocar um colapso no abastecimento de todo o país, caso ocorra os desastres naturais.
Todas essas consequências atingem a humanidade, que além de ter esgotadas sua comida, sua cultura e sua água, também tem entre seus indivíduos pessoas diretamente contaminadas pelos agrotóxicos. Foi esse o caso da presidente do Comsea. Maria Geralda esteve sob a pulverização de um avião que aplica agrotóxicos nas lavouras e teve seu cabelo e pele dilacerados. O uso de medicamentos terá que ser feito por todo o resto de sua vida, porque ainda há consequências em seu organismo, que apresenta problemas de difícil cura.
“Como apresentam pesquisas da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a cada ano são 400 mil novos casos de câncer, e a previsão é de que cheguem a um milhão de casos”, retratou Leomar.
Inversão
Leomar ainda apresentou o resultado de uma pesquisa desenvolvida na Rutgers University, que fez uma verificação de nutrientes presentes em cada espécie de alimento, entre os produzidos de modo “convencional” pelo agronegócio e aqueles orgânicos, provenientes da agricultura camponesa. O feijão, por exemplo, apresentava 1.585 pontos da medição de ferro quando produzido de forma orgânica. Já o mesmo alimento produzido pelo agronegócio apresentava apenas 19 pontos. “O problema não é a falta de comida, mas sim a falta de alimentos. Não é mais o raquitismo, é a obesidade”, apontou.
A partir dessa conclusão, o agricultor apontou a agroecologia como a alternativa para a desigualdade alimentar em todo o mundo. A agroecologia é um sistema de produção diversificada, gerenciado pelos camponeses em pequenas propriedades, sem o uso de agrotóxicos e em alinhamento com as políticas de preservação ambiental.
Para que esse novo sistema seja promissor, aponta Leomar, é fundamental que se inverta a ordem de prioridade dos investimentos no campo, já que o agronegócio abocanha 86% dos investimentos no campo para produzir alimentos envenenados, empregar menos mão de obra e focar sua produção na exportação, ou seja, sem alimentar a população que o sustenta. Só para se ter uma ideia, atualmente, mesmo com apenas 14% dos incentivos financeiros, a agricultura familiar produz mais de 70% dos alimentos no Brasil, ocupando apenas 24% do território cultivável e empregando 74% dos trabalhadores rurais.
É fundamental que, por meio da produção camponesa, as esferas de governo e a população em geral passem a priorizar a alimentação dos mercados locais e regionais; a recuperação dos saberes dos camponeses e o uso de tecnologias próprias e apropriadas a esse modelo de cultivo; e o fortalecimento da relação entre os trabalhadores do campo e da cidade. Além da melhoria do acesso à terra, por meio da reforma agrária; aos recursos naturais, sementes e subsídios, fundamentais para a ampliação da produção camponesa e que estão, atualmente, nas mãos dos grandes latifundiários.
Também é fundamental flexibilizar a legislação sanitária, reconhecendo que os produtos camponeses precisam, sim, de higiene, mas não têm o mesmo risco de contaminação do que aqueles produzidos em larga escala; e criar condições de moradia, educação e lazer dignas no campo.
Atravessadores
Apesar de 70% da alimentação brasileira ser produzida por camponeses, os alimentos nem sempre chegam às mesas dos brasileiros pelas mãos dos próprios produtores. Em vários casos, há a atuação de atravessadores, que terceirizam a venda e lucram sobre o produto do campesinato, sem sequer colocar as mãos na terra; e dos supermercadistas que, priorizando pela padronização dos alimentos, promovem o uso cada vez maior dos agrotóxicos. Esse modelo é levantado e promovido pelas Centrais de Abastecimento (Ceasa), que estão concentradas nos grandes polos urbanos e expõem ainda mais os produtores às lógicas dos atravessadores, que são feirantes ou supermercadistas, que atuam entre o produtor e o consumidor final. Essa realidade foi exposta pelo mestre em geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Pedro Henrique Gomide Lucci.
A falha no sistema de produção e distribuição dos alimentos, que prioriza o lucro, mostra a ausência do Estado na elaboração de um plano de atuação em seu território, um documento que seria fundamental para delimitar a produção agrícola. “Exemplo disso é a Fibria, a antiga Aracruz Celulose, que não produz alimentos para a população capixaba, apesar de usar grande parte do nosso solo e da nossa água”, retratou.
A dissertação de mestrado apresentada, intitulada “Geografia dos Alimentos no Espírito Santo”, aponta que os produtos provenientes da agricultura familiar têm, no Estado, sua produção concentrada na região serrana. No norte, há predominância das produções de mamão e manga e, em todo o Estado, os camponeses produzem mandioca e banana, que é a base da alimentação da maioria das famílias.
Para Pedro, existem muitas condições para que a agricultura familiar e camponesa seja expandida, mas falta vontade política para que se mude a realidade da produção agrícola capixaba. O principal problema apontado é que a deficiência de incentivos e estímulos estruturais no campo faz com que um grande contingente de agricultores, sem condições de se manter no campo, passe a integrar os bolsões de pobreza e fome nas cidades, passando por contradições que poderiam ser solucionadas caso esses mesmos agricultores tivessem sido incentivados anteriormente. “Para a geografia, o atual modelo de abastecimento é falho, porque não permite que a alimentação de qualidade seja oferecida igualmente a todos”.