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‘Em situação de vulnerabilidade, a periferia se une’

Pescadores distribuem peixe no Território do Bem e lançam abaixo-assinado para voltar a pescar em Vitória

Renato Moulin/Tec Perifa

“Isso é o que as comunidades periféricas fazem: quando estão em situação de vulnerabilidade, a gente se une”. A frase poética é mais do que retórica e brota de Ana Clara, coordenadora do Coletivo Beco, após a ação ocorrida nessa quinta-feira (20), em que pescadores artesanais de Vitória distribuíram 300 kg de peixes a moradores do Território do Bem, região da Capital que engloba nove bairros: Itararé, Jaburu, Bairro da Penha, Bonfim, Engenharia, Consolação, Floresta, Gurigica e São Benedito.

O Coletivo se define como uma “organização que trabalha na perspectiva de ampliação e busca por direitos coletivos de forma sustentável, que pontua o debate de negritude e gênero”. Diante do drama dos pescadores, lançados à criminalidade pela Lei Municipal nº 9077/2017, a postura foi de apoio à luta, recebendo o pescado. “É muito importante para nós apoiar essa luta, porque nós entendemos que os pescadores são fonte fundamental da nossa cultura, da história capixaba. Eles são pessoas que colocam a comida na nossa mesa, que participam da nossa forma de experenciar o universo da pesca. É muito importante ter a participação deles no nosso território, porque a maioria deles são periféricos também”, pondera a ativista.

Quantidade igual de peixe foi distribuída em Cariacica e, em breve, novas doações devem ser feitas em outros bairros da Grande Vitória. A iniciativa é do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), como parte de sua estratégia pacífica de manifestação. “Antes da lei, a pesca de rede podia acontecer em Camburi, seguindo as normas do Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis]. Depois dela, não pode pesca nenhuma ali e também proibiram a pesca do camarão até seis milhas da costa, tirando da gente um pesqueiro tradicional de camarão”, explica Hudson Ribeiro, secretário do sindicato.

Uma explanação sobre os impactos da lei consta em um abaixo-assinado lançado pelos pescadores na internet e também em meio físico. Com o título de “Carta aberta dos pescadores e pescadoras artesanais de Vitória à sociedade capixaba”, a petição recupera um slogan trabalhado há alguns anos pelos trabalhadores do mar, em manifestações já realizadas pela cidade após a publicação da lei: “Pescador não é bandido” e afirma denunciar as “violações dos direitos de pescadores e pescadoras artesanais”.

Lauro Sá

O texto chama a lei de criminosa por ameaçar “a subsistência de centenas de pescadores e pescadores artesanais” e ferir a Lei Federal nº 11.959/2009, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, especialmente nos artigos artigo 3º, parágrafo 1º, e no artigo 5º, inciso X.

No primeiro caso, a Política estabelece que “ao regular as atividades pesqueiras, visa garantir a permanência e a continuidade da pesca artesanal, e ordena que a regulamentação da pesca deve considerar as peculiaridades e as necessidades dos pescadores artesanais, de subsistência e da aquicultura familiar”.

No segundo, a lei federal afirma que, mesmo nas Áreas de Proteção Ambiental (APAs), regidas pela Lei Federal 9985/2000 (que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc), “fica estabelecido que devem ser protegidos os recursos naturais necessários à perpetuação das populações tradicionais, respeitando e valorizando o conhecimento e a cultura desses povos, de modo a garantir a utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação ou a justa indenização pelos recursos perdidos”.

O texto afirma ainda a grandiosidade da pesca artesanal, que envolve dimensões econômica, social e cultural. “A pesca artesanal não é somente uma profissão, é uma atividade essencial para a subsistência. É um jeito de viver, de se relacionar com a natureza, pois as comunidades pesqueiras conseguem conciliar de maneira harmoniosa a sustentabilidade ambiental nos recursos utilizados. É uma atividade que desempenha um papel importante na economia local. É crucial garantir que os pescadores tenham seus direitos respeitados e protegidos, além de promover uma abordagem sustentável e equitativa em relação à pesca”.

Os pedidos são pela “revogação imediata das proibições contidas na Lei Municipal 9077/2017, para que possamos retomar as nossas atividades” e para que os órgãos responsáveis abram diálogo para a participação dos pescadores na construção de políticas públicas e na gestão dos espaços oficiais relacionados com a atividade. Entre eles, o “Projeto Participativo da Pesca Artesanal, em que sejam criados: a Gerência de Pesca Artesanal Municipal, o Fundo Municipal para Aquicultura e Pesca Artesanal para execução de políticas públicas específicas”, conforme proposto pela vereadora Karla Coser (PT) em projetos de lei protocolados na Câmara Municipal.

A petição também solicita que os pescadores tenham representação nos “conselhos consultivos e deliberativos relacionados à pesca e ao uso sustentável do ambiente marinho”, a exemplo da APA Baía das Tartarugas, criada em 2018, mas que ainda não conta com seu conselho gestor atuante nem com o Plano de Manejo.

Perseguição

Sancionada pelo ex-prefeito Luciano Rezende (Cidadania), a Lei 9077/2017 tem sido utilizada pela gestão atual, de Lorenzo Pazolini (Republicanos), para, ao lado de duas portarias do Ibama, legitimar uma verdadeira perseguição aos pescadores artesanais. A decisão foi deflagrada no dia 6 de junho, por meio de uma operação conjunta de fiscalização, envolvendo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semmam), Capitania dos Portos, Polícias Ambiental e Federal e Ibama, que apreendeu apetrechos de pesca de pelo menos sete barcos camaroeiros. Desde então, os pescadores se viram obrigados a parar de trabalhar para não sofrerem mais sanções, como multas e apreensões de apetrechos de pesca.

Uma audiência pública foi realizada na Câmara de Vereadores para discutir a questão, tendo sido retomada a proposta de implementar, inicialmente de forma experimental, a técnica da pesca assistida, conforme já apresentado formalmente à prefeitura pelo Comitê Estadual de Gestão Compartilhada para o Desenvolvimento Sustentável da Pesca (Compesca). Mas até o momento, decisões práticas não foram tomadas e muitas famílias de pescadores já passam necessidades, sem poder garantir o sustento da família.

Cooperação

Renato Moulin/Tec Perifa

A ideia é continuar se aproximando das comunidades periféricas da cidade e acionar esferas estaduais, federais e judiciais em busca de uma solução que permita o fim da criminalização da pesca artesanal e o retorno da dignidade aos trabalhadores do mar na Capital capixaba. A depender da força das comunidades, a estratégia tem tudo para dar certo, afinal, como afirma a coordenadora do Coletivo Beco, “essa é a essência das comunidades periféricas: se ajudarem, manter o espírito de cooperação”.

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