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​Embaixo da lona, sonhando e cultivando alimentos

Acampamento João Gomes, em Linhares, é um dos exemplos de que a luta pela reforma agrária continua vigente e necessária
Quatorze de julho de 2019. Como toda acampada, Ana Lúcia Araújo lembra exatamente o dia em que o sonho de ter sua terra própria ganhou um novo lugar. “O que me trouxe para essa luta é que sempre fui escrava dos outros, trabalhei fora. Decidi mudar de vida, tentar minha vida de outro jeito. ‘Tô’ feliz, deixei de trabalhar para os outros e trabalho para mim mesma”.

Ela saiu de São Mateus, norte do Estado, há quatro anos rumo ao acampamento Paulo Damião, em Linhares, onde ficou até aquele memorável dia de julho, quando houve a ocupação que formou o Acampamento João Gomes, onde ela hoje vive com outras 36 famílias vindas também de Aracruz, Serra e distritos de Linhares. Os dois assentamentos não são distantes e estão na região de Palhal, em áreas que foram concedidas à Petrobras mas devolvidas ao governo do Estado após desistir do empreendimento pretendido.

De posse estadual, o caso joga luzes a uma questão: os primeiros assentamentos criados no Espírito Santo a partir do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos anos de 1980 foram de iniciativa do governo do Estado. Depois, vieram os assentamentos realizados a partir do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal. Com as dificuldades de um governo nacional totalmente alinhado com o agronegócio e abertamente contra os camponeses e povos tradicionais, o movimento cobra uma postura mais ativa do governo do Espírito Santo para resolver a situação das famílias que lutam por um direito tão básico como o acesso a uma terra para viver e plantar.

Atualmente, existe uma mesa de resolução de conflitos criada pelo governo do Estado, na qual estão sendo discutidas estas e outras áreas de acampamentos do MST, muitos deles que foram por décadas ocupados pelo monocultivo de eucalipto e onde hoje se produzem alimentos.

A luta no Palhal é longa: João Gomes, homenageado com o nome do acampamento coordenado por Ana Lúcia, foi um dos grandes lutadores para concretizar o sonho de dar uso àquela terra, que o movimento já tinha ocupado e sido despejado outras vezes anteriormente. “O momento mais difícil já passou, que é quando a gente chegou, tendo que montar os barracos. Foi difícil mas fomos nos ajeitando, nos ajudando, cavando poços. Uma das dificuldades que ainda temos é quando alguém precisa ir no médico. Para a escola, quando tinha aula, o ônibus pega aqui e leva as crianças”, relata.

Hoje a coordenadora enxerga a situação como mais tranquila, pois desde a última entrada, em 2019, não houve nova ameaça de despejo. As famílias seguem morando embaixo da lona ou com casas simples feitas com restos de madeira e telhas de Eternit. A mais numerosa é formada por um casal com oito filhos.

Entre os moradores do acampamento, alguns trabalham fora e outros se dedicam à tarefa de cultivo para consumo próprio e comercialização, com produção que ajuda a abastecer cestas de alimentos vendidas e doadas pelo movimento na Grande Vitória, e também com a realização de parceria com assentamentos, que negociam principalmente as hortaliças produzidas no João Gomes. Há uma horta coletiva e também um pedaço de terra de um hectare para cada família, cujas casas estão próximas, formando uma pequena vila. Mas os plantios também acontecem nos quintais das casas.

A produção tem diversas hortaliças, milho, feijão, banana, aipim, pimenta-do-reino, quiabo, entre outros produtos alimentícios, além das criações de galinhas e porcos. A venda em feiras ainda é dificultada pela limitação de transporte, já que as famílias que possuem veículo próprio são justamente aquelas que trabalham fora do acampamento. “Mas estamos nos organizando para tirar um dia e ver qual companheiro pode colocar um reboque para tentar levar os alimentos para a feira”, conta Ana Lúcia.

Apesar das dificuldades, a coordenadora do acampamento não tem dúvidas de que sua qualidade de vida e de seus filhos melhorou desde que passaram a viver por lá. Constantemente, chegam pessoas querendo um pedaço de terra para viver. Mas ela lamenta não poder atendê-las, pois o acampamento João Gomes já está no limite de capacidade e com uma fila de espera de 12 pessoas para caso algum acampado desista de seguir lá, o que não tem acontecido depois do momento inicial de consolidação. As constantes crises econômicas e sociais mostram como a reforma agrária não é apenas um sonho que ficou para trás, mas uma necessidade ainda real.

Os acampados do João sonham com a posse definitiva das terras e a transformação do local em assentamento. Alguns querem plantar café, cacau, outros expandir o cultivo de pimenta-do-reino. Ana Lúcia diz que os filhos querem plantar aroeira no local. Ela também sonha, mas pretende seguir a luta, assim como fez João Gomes. “Meu sonho é ajudar outras famílias, não quero ficar parada como pé de coco aqui dentro. Há muitas famílias boas perdidas nas ruas. Quero ajudar a trazer para a roça, para os acampamentos, e mostrar que a vida aqui não é ruim, dá para sobreviver. No começo é difícil, mas depois a gente vive bem”.

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