Nova ocupação em Aracruz não está descartada, mas próximos passos da luta por direitos serão discutidos em assembleia
“Não houve nenhum avanço, as empresas estão irredutíveis”. Esse é o resumo da reunião realizada na tarde dessa terça-feira (17) entre as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, responsáveis pelo crime contra a bacia do Rio Doce, em novembro de 2015, e as comunidades indígenas Tupinikim e Guarani de Aracruz, no norte do Estado, sob intermediação do juiz federal da 4ª Vara de Belo Horizonte, Vinícius Cobucci.
O relato vem do Conselho Territorial de Caciques, que lamenta a postura das empresas criminosas. “Não querem reconhecer o direito [de reparação e compensação] individual”. Essa pauta, explica Joel Monteiro, presidente da Associação Indígena Tupinikim Caieiras Velha (AITCV), visa estabelecer um processo semelhante ao dos atingidos não-indígenas, que foi a indenização por CPF e não por núcleo familiar, como aconteceu nas aldeias, fazendo com que a maioria das pessoas não tenha sido indenizada, considerando ainda a exclusão total de muitas famílias do programa estabelecido pela Fundação Renova.
“As empresas esvaziaram a importância das nossas pautas, e não apontaram soluções concretas. Falou-se em manter o formato do acordo por núcleo familiar; suspensão do auxílio em dezembro de 2024; e avaliar se há possibilidade de incluir novas famílias”, informa.
Sobre o Programa Básico Ambiental Indígena (PBAI), Joel relata que também não houve avanços, pois as empresas querem seguir com a elaboração do estudo de forma desvinculada do Plano de Retomada Econômica e da questão das indenizações – ponto primordial da pauta indígena, sem o qual nenhum outro pode avançar.
Além desse PBAI, há um outro estudo semelhante, PBA, aguardado pelas comunidades, que é uma das condicionantes da Vale referente ao licenciamento da ferrovia construída dentro do território indígena. Conforme informou o cacique Vilmar (Tupã Atã), da aldeia Caieiras Velha, o tema contempla pendências de mais de uma década. “São treze anos com pendências sobre a concessão da ferrovia”, afirma, citando ações de cunho social e ambiental que já deveriam ter sido realizadas junto às aldeias afetadas pela ferrovia.
Pendências que não são exclusividade da Vale, pois há várias empresas que não cumpriram com condicionantes ambientais relativas a seus empreendimentos instalados nos territórios indígenas, muitas delas que acionam a Justiça quando há ocupação da ferrovia, reclamando prejuízos financeiros milionários. Entre elas, a Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), que não cumpriu condicionantes do licenciamento ambiental do Canal Caboclo Bernardo, construído na década de 1990, conforme informou o Cacique Toninho, de Comboios, em fevereiro, quando da primeira reunião intermediada pela 4ª Vara entre as empresas e as comunidades, após a suspensão da ocupação dos trilhos no final do ano passado.
Prioridades
A demanda das comunidades é que primeiro as questões de indenização sejam sanadas para então retomar o PBAI da Vale. “Como o ponto fundamental para seguir com a mesa de diálogo era a indenização individual, agora o Conselho Territorial terá que se reunir com as comunidades para entender qual será a deliberação”, explica o presidente da Associação Indígena Tupinikim Caieiras Velha.
Para essa próxima assembleia, os passos a serem dados incluem uma nova reunião com o magistrado da 4ª Vara Federal, agendado para esta sexta-feira (20) e, possivelmente, reuniões internas de cada aldeia, antecedendo a assembleia geral. “Vamos fazer um alinhamento dentro do Conselho Territorial, depois organizar uma assembleia com as comunidades. Antes, cada comunidade deve fazer reunião interna. Com o juiz, vamos levar algumas informações que ele talvez não tenha conhecimento sobre violações de direitos dentro do território, questões que ainda não conseguimos apresentar”.
Um possível retorno da ocupação da ferrovia da Vale que atravessa os territórios indígenas não está descartado, afirma Joel, apesar do desgaste que representa para as aldeias. A liberação dos trilhos foi feita na última sexta-feira (13), como um voto de confiança ao juiz Cobucci, mediante sua decisão de retomar as intermediações da Justiça Federal nas negociações entre as comunidades indígenas e as mineradoras.
“A decisão pela ocupação é uma competência das comunidades. A gente entende que nosso papel como lideranças é evitar uma nova ocupação, por conta dos riscos, mas as comunidades são soberanas, elas que decidem. A gente vai tentar manter esse equilíbrio, esperar a reunião com o juiz e organizar a assembleia”.
‘Acordo-desastre’
O objetivo de toda essa mobilização indígena é a revisão do “acordo-desastre”, como eles denominam o acordo firmado com a Fundação Renova em 2021, feito de forma autoritária, conforme o Conselho Territorial dos Caciques explica em carta enviada à Justiça Federal, ao apresentarem os motivos dessa ocupação dos trilhos, um ano após a primeira ocupação, Argumentos que foram reforçados pelo Ministério Público Federal (MPF) ao recorrer da sentença de reintegração de posse expedida pela 1ª Varal Federal de Linhares, em favor das empresas, destacando que a ocupação da ferrovia marca “o estopim de um processo longo e contínuo de violação de direitos dos povos originários localizados no Espírito Santo”.
“A Fundação Renova, que tinha obrigação de garantir um acordo justo e igualitário, fez o exato oposto, transformando o acordo contra o qual lutamos em um novo desastre (…) Tivemos um acordo injusto, ilegal e violador de direitos, que resultou na pior indenização de toda a Bacia do Doce. Não houve consulta livre, prévia e informada [conforme determinada a Convenção 169 da OIT]. Na verdade, as pessoas foram obrigadas a aceitar os termos do acordo-desastre porque ‘ou era aquilo ou nada’ (…) Todos os demais problemas surgem dessa violação, desse desrespeito. E nós, povos originários, não temos opção: só nos resta lutar contra essa violação continuada”, expõem os caciques.
A pauta de reivindicações é a mesma que motivou a ocupação da ferrovia durante 43 dias há um ano, que resultou em algumas conquistas para as comunidades, como a saída da Fundação Renova das tratativas com as comunidades, que passaram a ser feitas diretamente com as mineradoras mantenedoras, e com a retomada do pagamento do Auxílio de Subsistência Emergencial (ASE), equivalente ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), pago aos atingidos não-indígenas. Os outros pontos de pauta, no entanto, não foram cumpridos pelas mineradoras, o que motivou essa segunda ocupação, realizada entre 17 de setembro e 13 de outubro.
Contexto jurídico favorável
A mobilização ocorre em um momento em que as empresas, especialmente a Vale, têm sofrido derrotas importantes na Justiça, não só brasileira, mas também estrangeira. Em setembro, o desembargador federal Ricardo Machado Rabelo, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), confirmou a ilegalidade de comissões de atingidos criados de forma apócrifa por um grupo de advogados de Baixo Guandu, no noroeste do Espírito Santo, sob orientação do antigo juiz do caso, Mário de Paula Franco Junior, o que abriu caminho para processos de indenização mais justos, sem a imposição de valores baixos e a cláusula ilegal da quitação geral de danos.
No final de agosto, o juiz Vinícius Cobucci determinou, em sentença que analisou o mérito da questão, a inclusão das comunidades costeiras de Linhares, São Mateus e Conceição da Barra, no litoral norte capixaba, nos programas de reparação e compensação de danos da Fundação Renova, ação que estava pendente desde 2017, quando o Comitê Interfederativo (CIF) publicou a Deliberação 58. E no início daquele mês, a Justiça Britânica decidiu incluir a Vale como ré, ao lado da BHP Billiton, na ação de R$ 230 bilhões em favor de mais de 700 mil atingidos brasileiros.