Fotos: ENA/Divulgação
Foram quatro dias de intensas experiências: rodas de conversa, visitas guiadas, seminários, oficinas, feira de produtos, shows e uma vivência com dois mil participantes de todo país, fora o público local de Belo Horizonte. Foi na capital mineira que aconteceu entre os dias 31 de maio e 3 de junho, o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), um sopro de esperança nestes tempos de crises e golpes.
Do Espírito Santo, caravanas do sul, do norte e da Grande Vitória participaram com cerca de 100 pessoas entre agricultores, estudantes, agrônomos, pesquisadores e parceiros, trazendo experiências e voltando com aprendizados e inspirações para seguir atuando na defesa e na prática da agroecologia no território capixaba.
A agroecologia representa uma visão ampliada da agricultura para muito além de buscar apenas produtividade ou lucro, considerando a conservação do ecossistema, as questões sociais, culturais, raciais e de gênero envolvidas, os saberes tradicionais e modernos, o uso de insumos naturais, a sazonalidade, a busca pela segurança e soberania alimentar, entre outros aspectos.
Agrônomo e agricultor quilombola de Conceição da Barra, João Batista Guimarães foi ao encontro buscando conhecer outras experiências que possam ajudar a fortalecer as comunidades que retomaram territórios que passaram décadas ocupados pelo monocultivo de eucalipto e agora buscam reconvertê-los à agroecologia.
“Estamos recuperando solos que estavam totalmente doentes, precisando de vida, de biodiversidade, era uma região de Mata Atlântica. Fiquei feliz que houve mesas sobre cada bioma do Brasil e encontramos muitas experiências fantásticas que vão ajudar a enfrentar os dilemas que temos em relação à produção e comercialização. Muitas comunidades de outros lugares do país têm realidades parecidas com a que a gente vive, mas não temos essa informação, pois os grande veículos de comunicação não divulgam”, disse. O Espírito Santo compartilhou diversas experiências na mesa que discutiu a construção da agroecologia nos biomas, no caso, na Mata Atlântica do Sudeste.
As retomadas quilombolas no Espírito Santo contaram com um espaço para exibir material mostrando as boas práticas desenvolvidas ali e denunciando os danos do monocultivo de eucalipto para a natureza, representados principalmente pela Aracruz Celulose (Fibria) e Suzano. Ali também esteve presente o estande da Associação de Plantadores de Água, do Sul do Estado, que trabalha estratégias para melhor cuidado com a água, fundamental para a agricultura e a vida no planeta.
Outro espaço que chamou atenção foi montado pela seção capixaba da organização não governamental Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), que destacou a relação entre petróleo e agrotóxico como um modelo oposto ao da agroecologia, fruto do acúmulo feito nos últimos anos por meio da Campanha Nem Um Poço a Mais. No local, foi exibido também um carro com motor convertido para óleo de cozinha usado, uma alternativa aos combustíveis não renováveis.
A preocupação com a saúde no encontro e na agroecologia no cotidiano vai para além do não uso de agrotóxico. Por isso, o ENA teve uma tenda própria dedicada a terapias alternativas para cuidar do corpo, da mente e do ambiente.
Agricultor e terapeuta, Primo Dalmásio, da Associação Agroecológica de Nova Venécia, foi um dos que participou de atividades relacionadas com o tema. “Estivemos em debates na área de terapias no sentido de ter um alimento saudável com bastante energia, no cuidado do solo, da água. Na associação temos hoje cerca de 10 terapeutas que trabalham dentro da agricultura. Não basta produzir alimento, tem que conhecer a qualidade dele e do ambiente. O solo, a água, o ar estão contaminados e, a partir das terapias, temos a possibilidade de curar, isso é muito gratificante”, diz o agricultor, destacando técnicas como a homeopatia e o heiki para a cura das pessoas e do meio ambiente.
João Batista também ficou impressionado com a participação dos jovens no evento nacional. “A juventude é a principal responsável por dar continuidade ao projeto de agroecologia que vem sendo construído a duras penas. O ENA conseguiu mobilizar uma grande diversidade de pessoas”, ressaltou o quilombola.
Integrante da Pastoral da Juventude Rural, Wanderson Alves participou da plenária de Juventudes e dos debates sobre educação, constando processos similares em vários estados brasileiros, como o fechamento de escolas no campo, mas por outro lado, o crescimento do número de cursos superiores especializados em Educação no Campo. “A juventude vem cumprindo um papel muito importante na militância, além do compromisso com os estudos, também estamos na luta pelos direitos” enfatizou. Ele destacou a importância destes estudantes de educação no campo em ampliar o diálogo entre os saberes populares e o saber acadêmico.
O ENA reúne os acúmulos dos últimos anos em termos de agroecologia. “Entre os grandes desafios está a recuperação do solo, a produção e o grande gargalo que é a comercialização. Essa troca de saberes com companheiros do Brasil inteiro é fundamental para estarmos conectados, afinados, construir identidade como camponeses e lutar pela soberania alimentar”, considera Edmar dos Santos, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Para ele, uma das contribuições que pôde tirar do encontro foi relacionada às estratégias de comercialização da produção, conhecendo melhor experiências de sucesso desenvolvidas em estados do Nordeste, em Santa Catarina e em Minas Gerais. “A agroecologia não são apenas práticas alternativas, são realidades existentes. Em outros estados se trabalha com redes de abastecimento, na articulação para ter pontos de apoio na cidade, construindo uma relação direta com os consumidores, para não cair nas mãos de atravessadores”, explica Edmar.
Nesse sentido, o tema do IV ENA, Agroecologia e Democracia Unindo Campo e Cidade, foi bem explorado. Realizado no Parque Municipal, no Centro da Cidade de Belo Horizonte, o evento teve momentos abertos à população em geral, incluindo uma grande feira com produtos de todo Brasil e um banquete popular agroecológico oferecido gratuitamente pelo ENA no domingo a todas pessoas que passasem pelo parque.
A geógrafa Mariana Vilhena, integrante do Grupo de Estudos sobre a Questão dos Alimentos (GEQA) da Ufes, destacou a importância dos encontros presenciais para a agroecologia, quando se trocam saberes, experiências, sementes. E, ainda, o diálogo com a população urbana.
“Compartilhar comida na cidade é algo muito raro, ainda mais em espaço público. Então ações como o banquete têm um força muito grande, inclusive para dialogar com pessoas que moram na cidade e não conhecem sobre agroecologia. Os momentos de almoço e janta no encontro também foram importantes para as pessoas sentarem junto, se conhecerem, conversar”, conta ela que ajudou na cozinha do evento, cujos alimentos, preparo e serviço ficaram por conta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Mariana ressaltou a diversidade do cardápio e a importância da agroecologia no reconhecimento da alimentação como cultura e história dos povos. “A diversidade de sabores do banquete quebrou a monotonia da alimentação que a gente vive. Estimula o paladar e tira o tédio que podemos ter diante da homogeneização da alimentação que costumamos ter, a não ser que resistamos a esse sistema”.
Outra participante capixaba, Larissa Loyola, do Coletivo Casa Verde, que trabalha agroecologia no contexto urbano, considera que o evento foi muito positivo. “Há vários movimentos em outras cidades que estão acontecendo e mostram que existe agricultura e alimento saudável dentro da cidade. Voltamos muito animados para tentar articular as experiências de agricultura que temos na Região Metropolitana da Grande Vitória, fortalecer esse movimento para transformar também a cidade”.
Ela lembra que o evento aconteceu numa semana em que o país começou ainda diante das incertezas em torno da greve dos caminhoneiros, que nos leva a pensar na forma de agricultura, dependente de percurso de longa distância dos chamados “alimentos quilométricos”.
O conceito de soberania alimentar questiona essa questão da agricultura pautada apenas pelo lucro do mercado, sem se importar com a forma como o alimento é produzido nem o impacto socioambiental dessa produção. “É necessário pensar numa forma de agricultura, num método de produção de alimento que seja pautado no local, nos pequenos agricultores, na biodiversidade do lugar, só assim a sociedade vai ser autônoma e ter consciência sobre o que está ingerindo”.
Larissa ressalta a importância da valorização das comunidades tradicionais com seus saberes e práticas, algo que se fez presente desde a bela cerimônia de abertura com místicas de indígenas, mulheres, apresentações ligadas à espiritualidade de matriz africana e grupos de cultura popular. E se fez presente até o final, com destaque para a participação capixaba cantando no palco com o quilombola Caboclo Sapezero e o cacique indígena Toninho Guarani.
O ENA deixa mais evidente uma das frases que muitos militantes da agroecologia costumam dizer: comer é um ato político.
Leia aqui a Carta Política do Encontro Nacional de Agroecologia.