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‘Enquanto negam a importância da Agroecologia, alimentamos o povo com ela’

MPA posiciona a Agroecologia como uma ciência ampla, que precisa de investimento público para crescer mais

Divulgação/MPA

A organização social para a luta coletiva dos trabalhadores é a forma mais eficiente de conquistar e garantir a implementação de direitos essenciais para a dignidade humana e a qualidade de vida. Em se tratando de produção e consumo de alimentos, essa organização e luta navegam nas águas da segurança e soberania alimentar e da conservação da natureza, numa polarização constante com o poder econômico e político do agronegócio, caracterizado por fartos incentivos fiscais, exportação de commodities, concentração de terras, expansão de monocultivos e consumo intensivo de agrotóxicos.

No Espírito Santo, passado um longo período de desmonte das políticas públicas federais, onde as frágeis ferramentas estaduais permitiram que a corda não arrebentasse de uma vez contra os camponeses e pequenos agricultores, o momento é de inversão de cenários: uma retomada vigorosa, a partir de Brasília, do status político da Agricultura Orgânica e Agroecologia, visando fortalecimento do orçamento e estrutura de governo para apoio à soberania alimentar e dignidade do povo do campo, em contraposição a uma postura de negação de políticas públicas específicas para esses dois setores por parte da gestão estadual, nitidamente comprometida com o agronegócio, apesar do esforço discursivo de disfarçar essa escolha política por meio de termos recém-criados, como agricultura regenerativa.

“Enquanto o Estado nega a importância da Agroecologia, a gente mostra as contradições alimentando o povo com ela”, resume o camponês Leomar Lírio, membro da coordenação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) na região serrana capixaba.

Um dos mais importantes movimentos sociais do campo no Brasil e no Espírito Santo, o MPA é profundo conhecedor da importância de “dar nome aos bois”, de lutar por políticas públicas de governo a todo momento e, simultaneamente, manter o melhor trabalho de campo possível com recursos próprios dos camponeses e camponesas e suas respectivas associações e coletivos. “A Agroecologia é uma ciência, não é só uma técnica. Essas outras modalidades, agricultura regenerativa, sustentável… elas é que se inserem na Agroecologia, que é muito mais ampla”, explica.

Campesinato

A afirmação do termo camponês e campesinato, ressalta, é uma estratégia fundamental de fortalecimento prático das lutas empreendidas no dia a dia. Como bem expôs o jornal Le Monde Diplomatique Brasil, em reportagem publicada no último dia 17 de maio, o termo foi retomado no início dos anos 2000 pelo MPA com esse objetivo. Intitulado “Camponesas e camponeses do MPA – modos de ser, de produzir e de lutar”, o texto de Denise De Sordi, historiadora e doutora em História Social, pesquisadora da FFLCH/USP e da Fiocruz, conta com depoimentos de outro integrante do MPA capixaba, o camponês Clóvis Conte.

“Ser do campo é diferente de estar no campo”, afirma Clóvis à historiadora. “Ser do campo é você imaginar que você é parte da natureza, que os rios que correm – pequenos ou grandes – são como as suas veias, que as árvores que estão ao teu redor, é como se fossem teus braços e tuas pernas, que a harmonia que circula internamente é como os pássaros que cantam (…) [uma] visão de que eu preciso me relacionar com todo esse universo; então, ser camponês, resumindo, é respeitar o espaço do outro, o outro natureza, o outro animal”, explana.

“Os modos de ser camponês e camponesa, de lutar e de produzir, não são compatíveis com a lógica e a opção política do agronegócio. As práticas agroecológicas estão orientadas para a soberania alimentar e para ‘a construção de territórios livres de agrotóxicos e de transgênicos para a proteção do patrimônio genético e cultural associado à agrobiodiversidade e à alimentação saudável'”, complementa Denise De Sordi, citando aspectos do Plano Camponês.

“Ante a imagem do ‘produtor rural”, contrapõe a acadêmica, “se afirmam enquanto camponeses e camponesas, agentes políticos e sujeitos históricos articulados por seus modos de ser, produzir e de lutar”.

Contradições

Leomar Lírio conta que, nesse contexto de organização social e luta, o MPA se somou a outros movimentos sociais capixabas que, reunidos no Fórum Estadual de Agricultura Familiar, pleiteiam políticas públicas estaduais para a Agroecologia. “Fomos cobrar do governo do Estado, da Seag [Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca], porque no governo federal ainda não tem nada garantido para esse ano, o orçamento definido pelo governo anterior para 2023 é muito pequeno“.

A resposta, no entanto, também não atendeu às expectativas. “O secretário [Enio Bergoli] disse que o foco é trabalhar a agricultura regenerativa e que isso envolve também as médias e grandes propriedades”, relata, tocando em pontos registrados também por Século Diário em fevereiro, a respeito das expectativas quanto à formalização da Subsecretaria de Agricultura Familiar.

“Percebemos que algumas ações do secretário não condizem com alguns compromissos que o governador assumiu, incluindo a carta da Ruca”, acrescenta Leomar, referindo-se a uma carta compromisso elaborada pela Rede Urbana Capixaba de Agroecologia que estabelece medidas a serem adotadas pela gestão de Renato Casagrande (PSB) para apoiar as iniciativas existentes e favorecer o surgimento de outros grupos e projeto de agroecologia urbana na região metropolitana e no interior do Estado.

Cortina de fumaça

Representante da Ruca na Comissão de Produção Orgânica do Espírito Santo (CPOrg/ES), Luara Monteiro avalia que “o termo regenerativo é uma cortina de fumaça. Sustentabilidade também”. Mediadora do painel sobre “Produto Orgânico amigo do clima”, realizada no último dia 1º, dentro da programação da XIX Campanha Anual do Produto Orgânico, Luara se coloca como “consumidora de orgânicos” dentro da diversificada cadeia de atores reunidos pelo fortalecimento do setor e afirma: esses termos não são a informação de que o consumidor precisa. “Sustentabilidade e agricultura regenerativa são duas palavras da moda, mas não atendem às necessidades de informação do consumidor”.

A postura da gestão de Enio Bergoli na Seag, de negar a Agricultura Orgânica e a Agroecologia, assevera, é um ataque a uma luta histórica dos movimentos sociais que têm construído essa ciência e esse modo de vida comprometido com a segurança e soberania alimentar, a justiça social, a proteção da natureza e a regulação do clima. Luta que resultou na normatização federal da Agricultura Orgânica. “Os orgânicos têm as conformidades oficiais, legais. Saiu essa semana, inclusive, uma portaria com atualização dessas conformidades”.

Negar esses termos consagrados e essa história, afirma, só aprofundam o fosso da desinformação a que o consumidor é jogado. Um exemplo são as feiras especializadas em orgânicos e agroecológicos, cada vez mais bombardeados de feirantes convencionais, sem qualquer ação direta de fiscalização e ordenação por parte do poder público, conforme denunciou a Comissão de Produção Orgânica no início de maio.

“É preciso uma comunicação mais direta com o consumidor. A feira poderia ter placas para falar dos produtos e feirantes e poderia haver campanhas de educação, sensibilização, por parte do governo, para ‘enraizar’ o consumidor, para aproximar mais o consumidor da terra, de onde vem o seu alimento”, sugere. Aproximação, exulta, que ela tem experimentado com muita alegria. “Quanto mais eu estudo e trabalho nessa área, mais eu respeito o agricultor orgânico e agroecológico. E mais eu pratico esses princípios na minha vida. Depois que eu entrei para a Ruca, comecei a plantar alguns alimentos na minha casa, a compostar, a procurar aproveitar melhor os alimentos”, elenca.

Investimento

Durante o painel, duas das perguntas do público, enviada aos debatedores, que chamou atenção, foi sobre se é possível matar a forme do mundo só com orgânicos e sobre como identificar um produto orgânico. São questões que estão presentes no cotidiano dos consumidores, apesar das quatro décadas de Agroecologia no Brasil e mostram a necessidade da informação correta à sociedade.

“A gente já sabe que é sim possível matar a fome do mundo somente com orgânicos. Então, porque não incentivar a transição agroecológica? Por que todos os governos não fazem isso?”, questiona. “Sem fomento, política pública, não tem como caminhar. Vai tirando a perninhas da centopeia, não mata logo, mas vai impedindo de andar”, metaforiza.

O assunto foi abordado pelos debatedores com foco em financiamento e educação do campo. A agrofloresteira Erenilda Ferreira Ghio, presidente da Associação de Agricultores Familiares Agroecológicos Orgânicos de Campinho (Vero Sapore), em Iconha, no sul do Estado, chamou atenção para a necessidade de mais escolas do campo e de melhor qualidade, tocando em uma luta empenhada pelo Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) desde maio de 2022 contra o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) imposto pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES)

“Sucessão no campo é questão de educação. Falo pela minha geração. A comunidade onde eu nasci, só deixamos nossos velhinhos lá. Porque na época que era para estudar, não tinha a facilidade de hoje, com carro para ir e buscar. Então tinha que sair pra estudar. E depois que sai, é muito difícil voltar. Eu fui para a cidade de Guarapari. É tão pertinho, mas se criam obstáculos tão grandes! Porque os costumes são outros. Estudei a história de Guarapari, não de Iconha. Mas eu tinha o pé no chão com ideia de voltar, era diferente. Mas meus primos, nenhum conseguiu voltar. Quando a gente vai para a escola, é alfabetizado para ser funcionários da Samarco, das empresas, não para ser empreendedor. Se não mudar essa questão, vamos continuar perdendo nossos meninos. Hoje melhorou mais, porque sai e volta da escola, mas tem que melhorar muito a qualidade das escolas”, relata.

O coordenador de Meteorologia no Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) Hugo Ramos enfatizou a necessidade de investimento nas instituições. “A falta de investimento prejudica nossa capacidade de desenvolver o nosso trabalho de forma plena. Existiram vários programas que no passado deram certo. Um órgão com a magnitude do Incaper, tanto na parte da pesquisa agropecuária, que hoje completa 50 anos, como a parte de assistência técnica e extensão rural, precisam de investimento. Temos que dar condições para que os colegas que trabalham com a gente possam chegar na casa dos agricultores com a melhor solução aplicada para aquela realidade. Isso é o mais importante. Se você fortalece a estrutura do Estado, você fortalece a população”.


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