Sindaema alerta para impactos de leilão bilionário anunciado pela Cesan

“O serviço de esgoto tem ligação direta com a saúde pública e a preservação ambiental. Em tempos de crise climática e poluição de rios e mares, entregá-lo à iniciativa privada é extremamente perigoso”. O alerta é da presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Espírito Santo (Sindaema-ES), Wanusa Santos, diante do anúncio da Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan) de leilão bilionário para firmar dois contratos de Parceria Público-Privada (PPP), que envolvem 43 municípios capixabas por mais de duas décadas.
O leilão internacional, com investimentos estimados em quase R$ 7 bilhões, está previsto para acontecer no dia 17 de junho na sede da B3, em São Paulo. Os contratos estão divididos em dois blocos. O primeiro abrange 35 municípios, incluindo a Capital, com investimento de R$ 1,08 bilhão e R$ 3,85 bilhões em custos operacionais ao longo de 25 anos. O Bloco 2 inclui oito municípios – Anchieta, Itapemirim, Iúna, Ibatiba e Castelo, no sul do Estado; Afonso Cláudio, na região serrana; e Viana e Guarapari, na Grande Vitória -, com investimento previsto de R$ 399,6 milhões e custos operacionais de R$ 1,39 bilhão em 23 anos.
Segundo o governo do Estado, a medida visa acelerar a universalização do serviço sem impactar as tarifas pagas pela população. Mas para o Sindaema, trata-se de uma medida de privatização repleta de riscos, que transfere à lógica do lucro a um serviço essencial e compromete o papel social da Cesan. “O Estado se desresponsabiliza pela prestação do serviço. Quem passará a executar são empresas privadas. Isso coloca em risco a qualidade, a acessibilidade e a segurança ambiental”, pontua Wanusa.
Ela observa que experiências semelhantes em outros estados resultaram em pedidos de “reequilíbrio contratual” por parte das empresas após alguns anos de operação, o que acaba por gerar aumento nas tarifas. “Mesmo com a PPP, não podemos garantir que não haverá aumento de tarifa. Se o serviço encarecer, a Cesan terá que repassar esse custo ao usuário”, destaca.
A dirigente sindical teme ainda pela sustentabilidade das operações em municípios menores, onde a demanda pode não ser economicamente atraente para empresas privadas. “A iniciativa privada visa o lucro. Se não houver retorno financeiro, esses serviços correm o risco de serem negligenciados”, afirma, defendendo que apenas o Estado tem condições de oferecer esse serviço com caráter social e compromisso com o bem público.
Apesar de o governo do Estado justificar a ampliação das Parcerias Público-Privadas (PPPs) e privatizações no setor na dificuldade em arcar com os investimentos necessários para cumprir as metas de universalização do saneamento previstas no Novo Marco Legal, Wanusa reforça que não havia necessidade de entregar à iniciativa privada sistemas que nos últimos anos foram universalizados pelo Estado em grande parte dos municípios, apenas para, posteriormente, transferir o patrimônio construído para a gestão privada, sem que as empresas assumam a responsabilidade por grandes investimentos a médio prazo.
Dos cerca de R$ 7 bilhões, apenas R$ 1,5 bilhão será destinado à expansão dos sistemas de esgoto. O restante será utilizado para manutenção e operação dos sistemas existentes, que, em muitos casos, já se encontram universalizados. “Vitória, por exemplo, já possui 100% de capacidade de tratamento. A PPP vai basicamente operar e manter um sistema que já está pronto. Isso fere o próprio princípio da PPP, que é fomentar a expansão e não apenas manutenção”, argumenta. Ela também destaca que municípios como Apiacá, Irupi, Dores do Rio Preto, Iúna, Ibatiba e Santa Maria de Jetibá já alcançaram a universalização do serviço com projetos públicos, como o Programa Águas e Paisagens, executado pela própria Cesan com apoio do Banco Mundial.
Wanusa lembra ainda das concessões já realizadas em municípios como Serra, Vila Velha e Cariacica, onde o esgotamento é operado em modelo de Parceria Público-Privada pelo grupo Aegea, e uma auditoria realizada neste ano pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCES) identificou problemas no tratamento de água e esgoto, além de falta de fiscalização e medidas para conectar imóveis à rede de esgoto. “No início houve estímulo à conexão, mas depois isso deixou de ser prioridade da PPP. Hoje, há metas não cumpridas”, aponta.

Para a sindicalista, o modelo proposto enfraquece o papel da Cesan e pode abrir caminho para uma privatização mais profunda. “O governo diz que PPP não é privatização, mas é uma forma mais branda, mais lenta, que leva ao mesmo destino: a entrega de um serviço essencial à lógica do mercado”, critica. “E é um contrato de décadas. Se daqui a 20 anos a empresa quiser devolver ao Estado, quem vai arcar com a recuperação dessa estrutura?”, questiona.
Diante disso, o caminho mais seguro seria manter a gestão pública e reforçar o papel da Cesan como operadora exclusiva dos serviços de saneamento, defende. “A Cesan tem expertise e já demonstrou capacidade de realizar os investimentos necessários. Privatizar é abrir mão do controle, da qualidade e do compromisso com o bem-estar da população”, conclui.
Para o Sindaema, o cenário atual do saneamento público é desafiador, especialmente após a alteração do marco regulatório em 2020, que, segundo a entidade, teve como objetivo favorecer a privatização. Desde então, os subsídios governamentais e de bancos públicos têm sido redirecionados para a iniciativa privada, dificultando o financiamento público do setor, reitera Wanusa.
Diante da escassez de recursos e de denúncias recentes sobre a gestão da Cesan, ela descreve um clima de insegurança entre os trabalhadores e falta de transparência nas informações sobre a situação financeira e capacidade operacional da concessionária. A repercussão de denúncias anônimas sobre irregularidades administrativas, aliada ao receio de demissões em massa, tem agravado esse cenário, pontua.
No início deste ano, a deputada estadual Iriny Lopes (PT) protocolou um requerimento de informação questionando o estágio de execução das obras contratadas pela Cesan nos últimos anos. A companhia tem prazo de resposta de 60 dias úteis a partir do último dia 13 de fevereiro, quando foi realizada a leitura do requerimento na Assembleia, para responder à solicitação, que também abrange o Balanço Financeiro da companhia, detalhando sua situação de endividamento de curto e longo prazo, o montante de investimentos realizados e sua distribuição por município e finalidade, além da composição de gastos com custeio nos últimos exercícios.

Marcos legais
A decisão da Cesan está alinhada às diretrizes do novo marco regulatório do saneamento básico, instituído pela Lei 14.026/2020, que incentiva a busca por parcerias com a iniciativa privada. Desde o Governo Temer (MDB), em 2016, o governo federal vem tentando alterar o marco regulatório do saneamento no Brasil. O primeiro foi instituído em 2007, por meio da Lei 11.445/07, que estabeleceu metas de universalização e financiamentos para o saneamento público, um avanço significativo, considerando que anteriormente essa responsabilidade recaía apenas sobre os estados, que frequentemente não possuíam recursos suficientes para investir no setor.
Em 2016, o governo Temer tentou modificar esse marco regulatório, com o objetivo de facilitar ainda mais a entrada da iniciativa privada no setor. Apesar de a tentativa não ter sido concretizada à época, em 2020, a Lei 14.026 foi sancionada, alterando significativamente as diretrizes. Wanusa destaca que o marco regulatório de 2020 priorizou a privatização em detrimento da universalização. Essa legislação determinou que as concessões de saneamento, cuja titularidade pertence aos municípios, deveriam ser renovadas com companhias estaduais ou licitadas para a iniciativa privada.
No cenário nacional, outros estados já adotaram modelos de privatização. Em Alagoas, no Nordeste, foi feita a concessão plena, enquanto em Santa Catarina e Paraná, no Sul, o modelo de PPP foi adotado. O modelo de concessão plena, que retira totalmente o controle estatal sobre a gestão da política pública de saneamento, ocorreu com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), em São Paulo, no Sudeste, e a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), no Rio Grande do Sul.