Quilombolas acionam MPF, Estado e CEDH sobre suposta reintegração de posse feita pela Donati Agrícola
Desta vez foi sem mandado ou liminar judicial, sem apoio da Política Militar ou de qualquer outro órgão público, apenas com segurança privado (ex-policial aposentado, identificou a comunidade) e ônibus caracterizado como de transporte escolar. A autoria, da Donati Agrícola, empresa do agronegócio da cana-de-açúcar de Conceição da Barra, no norte do Estado.
O relato vem da comunidade de Roda D’Água, integrante do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que também abrange o município vizinho de São Mateus, que ainda trabalha para refazer a estrada de acesso à comunidade. A cerca que delimita o território retomado também foi refeita.
Os dois bens foram os principais prejuízos causados pela ação da Donati no último dia 26 de setembro. O pretexto dos executores da empresa foi uma ação de reintegração de posse, mas sem comprovação da justificativa.
“Não entregaram documento nenhum. Só chegaram derrubando tudo, dizendo que era reintegração de posse. O mais abusivo é que a Donati usa um ex-policial, aposentado, que vem na comunidade com uma arma, ameaçando as pessoas. O transporte que a Donati usou pra trazer funcionários para desmanchar as casas foi um ônibus escolar, que deveria servir as famílias das roças, do interior, para levar as crianças para a escola, e é usado numa coisa dessas”, relata Josielson Gomes dos Santos, presidente da Associação Quilombola Morro da Onça e membro da Coordenação Estadual do Sapê do Norte (Coeq).
Morro da Onça e Córrego do Alexandre, comunidades vizinhas, certificadas, que trabalham em uma outra retomada próximo dali, apoiam a ação das famílias de Roda D’Água. Retomadas de terra são uma estratégia do povo quilombola do Sapê do Norte para reaver o território que lhes foi usurpado pelo agronegócio do norte capixaba. O setor na região é majoritariamente exercido por meios dos monocultivos de eucalipto (Aracruz Celulose, ex-Fibria, hoje Suzano Papel e Celulose) e, em segundo lugar, pela cultura da cana, que já teve como ícone a empresa Disa, de propriedade do ex-prefeito Jorge Donati, depois identificada por Apal e, agora, Donati Agrícola.
As retomadas procuram realizar o que a inércia do Estado atrasa há mais de uma década, seja em âmbito federal, principal competente para cumprir a obrigação constitucional de titulação dos territórios tradicionais quilombolas, seja em âmbito estadual, também habilitado para a tarefa. No Espírito Santo, inclusive, existe uma lei que estabelece essa obrigatoriedade, a de nº 5.623, de 9 de Março de 1998, último ano de governo de Vitor Buaiz, tendo o atual governador, Renato Casagrande, como secretário de Agricultura, e Perly Cipriano à frente da pasta de Justiça e Cidadania.
Em Roda D’Água, Josielson conta que há cerca de 20 famílias sem espaço para construir suas moradias, para a comunidade se desenvolver. “Os jovens vão casando, precisam de ter a sua casa. É urgente a necessidade de moradia”.
A primeira decisão pela retomada se deu em 2021, no âmbito da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. Na ocasião, explica, “foi identificada essa área da Donati, com quatro a cinco alqueires de terra, e a comunidade decidiu retomar para moradia”.
A área, afirma, é improdutiva. “Está abandonada, treze anos parada. Era da Disa, que plantava cana, agora é da Donati, que ainda não plantou nada. Mas foi a gente fazer a retomada, que apareceu a Donati Agrícola reivindicando. A Justiça deu ganho de causa para a empresa, mas o Ministério Público pediu ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] desapropriação para a comunidade”. Como a desapropriação não foi cumprida, a decisão de comunidade foi de ‘renovar a retomada” neste ano.
Legalidade
Desde a ação violenta do dia 26, Josielson conta que a empresa não voltou mais e a comunidade seguiu consertando os estragos. “Falamos que para fazer qualquer coisa contra a comunidade, tem que trazer mandado judicial”, reporta.
No último sábado (1), em reunião da Comissão Quilombola do Sapê do Norte, foram feitos dois encaminhamentos: demandar ao MPF de São Mateus informações sobre a ação de reintegração de posse que os funcionários da Donati alegaram existir; e acionar demais instituições de Justiça e também o Executivo.
“Vamos pedir uma investigação, alguma satisfação dos órgãos responsáveis, porque, segundo a comunidade, não tinha nenhuma liminar de reintegração, não teve nenhum aviso prévio, nenhum diálogo com a comunidade. A empresa apenas chegou com seus tratores e transporte, e inclusive disseram que tinha seguranças armados lá, ex-policiais”, argumenta Flávia dos Santos, integrante da Comissão Quilombola.
“Achamos isso um grande risco, muito perigoso fazer enfrentamento contra pessoas armadas. A comissão quilombola orientou a comunidade a não fazer enfrentamento com vigilantes armados e já foi feito documento”. A petição terá destino no MPF, nas Defensorias Públicas estadual e da União (DPES e DPU), na Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) e no Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH).
“A gente quer entender porque essas empresas acham que dentro das comunidades quilombolas, podem entrar na força, na marra, sem cumprir o que diz a lei”, reivindica.