“O Agro não é tech, não é pop, muito menos tudo” aponta subsídios para análise qualitativa análoga do Agro capixaba
“O Agro brasileiro é um tiro no pé do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro. O país está optando em sedimentar um status absolutamente subalterno na economia mundial. E os argumentos de que o Agro sustenta o Brasil não se sustentam”.
A afirmação é uma das considerações finais a arrematar os números elencados em “O Agro não é tech, não é pop, muito menos tudo” , publicado pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e a Fundação Friedrich Ebert Stiftung Brasil, que oferece subsídios para uma leitura qualitativa do agronegócio capixaba com conclusões análogas.
Os autores do artigo – os geógrafos Marco Antonio Mitidiero Junior, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege); e Yamila Goldfarb, pesquisadora e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) – demonstram, com bases em dados oficiais, que a campanha massificada na televisão aberta que visa associar o agronegócio brasileiro à modernidade e riqueza é carregada de mentiras e distorções e que a realidade se mostra exatamente o oposto.
O artigo demonstra que o Agro “recebe a maior parte de recursos públicos em créditos, incentivos, isenções tributárias e perdões de dívidas, [mas] o grande lucro fica com empresas de capital estrangeiro como Bunge e Cargill”; “não é grande gerador de trabalho e renda e depende de pacotes tecnológicos importados de fora”; “do ponto de vista ambiental, é o principal responsável pela devastação florestal e envenenamento dos solos, águas, homens, mulheres e crianças”; “não alimenta o mundo e tampouco aos brasileiros, [vide] o aumento da fome no Brasil, onde metade da população se encontra em algum grau de insegurança alimentar”; “e como se não bastasse, possui um importante papel na constituição da dívida pública”, além de ser o principal beneficiário da injustiça fundiária do país, onde “1% dos estabelecimentos domina quase 50% das terras rurais”.
Tirar o agro da condição de vilão do desenvolvimento do país, no entanto, não passa apenas por fazê-lo pagar mais impostos ou produzir internamente seus insumos. “O buraco é mais embaixo”, apontam os autores. “É preciso desmontar os mitos que vendem o Agro como motor do país e como fonte de alimento para o mundo. É preciso entender que existem, sim, alternativas e que elas passam por pensar a economia em bases justas, que beneficiem a coletividade e o ambiente/natureza”, conclamam.
A necessidade de desmistificação da imagem artificialmente modelada pela indústria cultural brasileira é um ponto ressaltado pelo economista e professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Arlindo Villaschi, ao repercutir o estudo na realidade do Espírito Santo.
‘Portadores de futuro’
O agronegócio capixaba, enuncia, é basicamente formado pela cafeicultura, pela silvicultura de eucalipto e celulose e pela bovinocultura – atividades que não podem ser definidas como “portadoras de futuro”, como ele gosta de considerar as atividades e comportamentos “que ainda não foram percebidas como importantes, mas que certamente serão muito no futuro” e que “não têm impacto negativo na mudança climática, na extinção de espécies e na diminuição das populações que sobreviverem e não contaminam o meio ambiente”.
“Nossa produção de café sempre foi predatória. Primeiro predou a Mata Atlântica, depois, quando parou de extinguir a Mata Atlântica, ou se transformou em pasto, ou voltou a ser café, mas com um novo tipo de predação, que é a deterioração do solo via uso de agrotóxicos e uso intensivo de água”.
A bovinocultura é outra atividade instalada na esteira da devastação da Mata Atlântica e hoje praticada de forma extensiva, com baixo uso de tecnologia, produzindo vastas extensões de solo degradado, pouquíssimos empregos e renda, e muito gás metano, sendo uma das principais estratégias de concentração de poder fundiário nas mãos das mesmas famílias de coronéis latifundiários, que impedem a extensão das áreas de plantio de alimentos pelos camponeses.
Já a silvicultura acrescenta ao tripé alta concentração fundiária a baixa empregabilidade e insegurança alimentar, o uso intensivo de agrotóxicos e elevado consumo de água e o imenso passivo socioambiental, de mais de meio século, com as populações tradicionais do norte e noroeste do Espírito Santo.
Segundo o Atlas da Mata Atlântica de 2018, a pastagem ainda é a principal ocupação do solo no Estado, cobrindo quase 40% do território, mas em constante declínio. Sua substituição tem sido feita principalmente pelo eucalipto, que é o uso que mais cresce, alcançado, segundo dados de 2015, 6,8% da área total do Estado. O café também cresce, mas em ritmo um pouco menor, chegando, na época, à marca de 9,4% de cobertura do território capixaba.
Elite colonialista
“O agro capixaba não tem soja nem milho, mas outras culturas foram e são talvez tão igualmente predatórias”, pondera Arlindo Villaschi. Além disso, constituem “forças econômicas muito bem representadas politicamente”, a começar pelos “coronéis do café”, que elegeram e elegem seus representantes nos espaços do Legislativo e Executivo, interferindo nas ações de governos e até do Judiciário.
“Quando fala-se em agro, a gente pensa no grande latifúndio do centro-oeste brasileiro, mas a mentalidade do agro está também no pequeno produtor de café do Espírito Santo. Ele se identifica como agro, se subordina às exigências de aplicação de agrotóxicos e contesta toda e qualquer fiscalização que vise diminuir a predação das águas e das matas e os direitos das populações tradicionais”. Politicamente, “há todo um ambiente que busca proteger essa predação continuada. Dificilmente tem secretaria de meio ambiente defendendo o meio ambiente. Basta ver os conflitos que existem entre a agricultura familiar agroecológica e a não agroecológica”.
Essa dominação política para perpetuar o domínio da terra, acima da função social da propriedade – estabelecida na Constituição Federal – é ressaltada no artigo dos geógrafos Marco Antonio e Yamila como um traço do anacronismo que ata o país a um passado seguidamente reeditado, desde os tempos da colônia portuguesa.
“Em estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade St. Gallen, na Suíça, a geração de valor pela elite brasileira fica atrás de países como Arábia Saudita, México, Rússia, Índia e Botsuana. Segundo o estudo, “as elites de alta qualidade executam modelos de negócios que criam valor, ou seja, dão mais à sociedade do que recebem. As elites de baixa qualidade, por outro lado, fazem o oposto e operam modelos de extração de valor”.
Calote trilionário
Extração de valor que se dá, como já dito no início do texto, por meio de baixa empregabilidade, baixa geração de tributos, degradação ambiental e injustiça fundiária. Mas, ressalta o artigo, “os números são muito mais alarmantes”, e envolvem calotes historicamente renovados ao Estado brasileiro e baixa participação no Produto Interno Bruto (PIB).
Estudo publicado em 2016 pela organização humanitária internacional Oxfam, com base em dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) de 2015, apontam o incrível contingente de “quatro mil pessoas físicas e jurídicas detentoras de terras” com “dívidas acima de R$ 50 milhões – totalizando mais de R$ 906 bilhões em impostos devidos”. Ou seja: quase um trilhão de reais de dívidas ao Estado brasileiro oriundas de quatro mil latifundiários.
“Se levarmos em conta que a participação da agropecuária no PIB, em 2018, foi de 309,611 bilhões de reais (IBGE), o Agro deveria trabalhar três anos, repassando todo lucro para pagar a conta”, calculam Marco Antonio e Yamila.
Dívidas que são roladas ano após ano, por meio de Medidas Provisórias que renovam o programa de Recuperação Fiscal (Refis). Somente a JBS recebeu um desconto de R$ 1,1 bilhão em 2018 do então presidente Michel Temer (MDB).
O mesmo relatório, prossegue, mostra que, dos quatro mil devedores, 729 declararam possuir 4.057 imóveis rurais que, segundo informações do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), somam mais de 6,5 milhões de hectares. “De acordo com estimativas do próprio Incra, se essas terras, em números brutos, fossem destinadas à Reforma Agrária, seria possível assentar 214.827 famílias (considerando tamanho médio do lote de 30,58 ha/família assentada)”, comparam.
‘PIBinho’
Todos esses números, enfatizam os autores da publicação da Abra e da Friedrich Ebert Stiftung, derrubam a aura super poderosa veiculada na campanha televisiva de que “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”.
“A potência do Agro resumiu-se, entre os anos de 2010 e 2018, a um pouco mais que 5% do PIB”, acentua o artigo, afirmando que os 26,6% alegados em 2020 são uma falácia, produto da invenção de um índice fantasioso chamado Produto Interno Bruto do Agronegócio. “Nessa metodologia, calcula-se a soma dos valores da produção agropecuária básica/primária, dos insumos para atividade, da agroindústria (processamento) e do que eles chamaram de agrosserviços”. O arranjo é denominado “conceito sistêmico de cadeia, com ligações a partir das atividades da agropecuária”. A manobra, sublinham os autores, é tão forçada que leva seus elaboradores a “quase excluírem atividade agropecuária em si, como encontramos na primeira frase da explicação metodológica: ‘Agronegócio é aqui definido como um setor econômico com ligações com a agropecuária'”.
O único dado verdadeiro utilizado nas propagandas “Agro é tudo” é o da balança comercial – R$ 48 bilhões de saldo em 2019, atribuído às exportações de soja, milho e carne, principalmente – mas que, como pode ser compreendido, não é suficiente pra sustentar o slogan, pois balança comercial, por si só, não é sinônimo de riqueza ou desenvolvimento, conforme mostram os países ditos mais ricos do mundo.
“Ao passo que setores da sociedade brasileira se vangloriam por ter o maior superávit comercial da balança agropecuária, potências econômicas como EUA e União Europeia possuem pequenos déficits e outras potências possuem déficits acentuados, como Japão e China (país que mais cresce economicamente no mundo). Enquanto o Brasil chegou a um superávit comercial na balança agropecuária de US$ 71 bilhões em 2017, a China teve déficit de US$ 61 bilhões e o Japão de US$ 71 bilhões, contudo o papel e a força econômica dessas duas nações no comércio mundial são imensamente superiores aos do Brasil. A ‘moral da história’ é de que os superávits comerciais do setor agropecuário pouco importam em economias avançadas”, assevera o artigo.
Desindustrialização e reprimarização da economia
O cerne do problema é a exportação de matérias-primas brutas – soja (11,57%), petróleo (10,74%), minério de ferro (8,98%) e milho (3,2%) – ou com baixo processamento industrial – pastas químicas de madeira (3,11%), carne congelada desossada de bovino (2,50%) e pedaços de galos/galinhas (2,15%) – o que mantém o País atrelado a uma dinâmica de colônia tropical da Europa. “É impossível não fazer relação com o período colonial da nossa história. Trata-se da perpetuação histórica de inserção subalterna e dependente do Brasil no comércio e na economia global”.
Os efeitos colaterais são ainda mais cruéis e envolvem, como já dito, a insegurança alimentar – as exportações de arroz crescem, à proporção que a área de plantio do cereal diminui, o trigo continua sendo o principal produto agropecuário de importação brasileira e mesmo horticulturas e tubérculos passaram a ser trazidos de outros países – e excrescências como a importação de papel, apesar da grande exportação de celulose, que produziu, durante a pandemia, uma crise do setor de embalagens de papelão.
A acelerada desindustrizalição brasileira e reprimarização da economia podem ser medidas pelo número de fábricas fechadas entre 2015 e 2020, resultando numa média de 17 por dia, e bem ilustrado pelo fechamento das plantas industriais da Ford depois de mais de 100 anos no Brasil.
A pandemia evidenciou a irracionalidade desse processo conduzido pelo agronegócio. A fabricação de máscaras faciais rendeu à China, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC) 40 bilhões de dólares entre março e setembro de 2020. Nesse mesmo período, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) informou que o agronegócio brasileiro faturou 35 bilhões de dólares em toneladas de soja, farelo de soja, açúcar e carne bovina. Com um detalhe, acentuam Marco Antonio e Yamila: a área ocupada pelos estabelecimentos rurais que declararam produzir essas commodities, segundo o Censo Agropecuário de 2017, totaliza 242,9 milhões de hectares. “Duzentos e quarenta e dois milhões de hectares geram menos valor que algumas fábricas chinesas!”, lamentam.
‘TINA’, não!
Para Arlindo Villaschi, é preciso combater a propaganda enganosa, questionar e depurar as informações, desmistificando as inverdades. O agro capixaba do café, eucalipto e pecuária é, proporcionalmente, tão nocivo à economia, ao meio ambiente e às famílias que são expulsas ou resistem arduamente nas áreas rurais do Espírito Santo do que os sojeiros do centro-oeste brasileiro.
O retrocesso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é um exemplo ilustrativo. O Estado, conta o economista, chegou a ter 80% da merenda escolar adquirida junto à agricultura familiar, mas, recentemente, “pela pressão do agronegócio via supermercados, baixou para os 30% mínimos estabelecidos na lei”. A agricultura familiar e especialmente a agroecológica, por sua vez, continua recebendo tratamento muito diferenciado junto às instâncias do poder público, seja para acessar crédito, seja para receber assistência técnica especializada.
“O peso ideológico e financeiro e, consequentemente político do agronegócio, praticamente transforma isso tudo [iniciativas portadoras de futuro] em marginalidade. E quando o agro tem uma chance como a que está aí desde 2016, vai fazendo a ‘terra arrasada’, com todos os instrumentos de regulação e fiscalização sendo devastados”.
Querem nos fazer crer na máxima do liberalismo emanado da Europa, alerta o acadêmico, referindo-se ao TINA – There is no Alternative, notabilizado por Margareth Tacher, primeira-ministra britânica entre 1979 e 1990, que afirma não haver alternativa frente ao modelo neoliberal.
“Mas existem sim alternativas. O Brasil pode ser um grande exportador de alimentos agroecológicos. Já é o maior exportador de arroz orgânico do mundo, com a produção do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. A grande escala pode ser alcançada não só com grandes propriedades, mas com pequenas produções feitas de forma organizada”, profetiza.