Nota técnica solicitada pela Justiça propõe ajustes no auxílio emergencial e ações de “estabilização econômica”
Arranjos familiares específicos e noções amplas de territorialidade são dois pontos cruciais desrespeitados pela Fundação Renova ao impor o “acordo-desastre” para reparar e compensar os danos causados pelo crime da Samarco/Vale-VHP nas comunidades Tupinikim e Guarani de Aracruz, no norte do Estado.
A argumentação consta na nota técnica (ofício nº 2539/2023) elaborada pela Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (DPDS/Funai) à Procuradoria Federal Especializada da autarquia. O documento foi encaminhado ao juiz da 4ª Vara Federal de Belo Horizonte, Vinícius Cobucci, em atendimento à solicitação feita pelo magistrado na última audiência de mediação liderada por ele entre as comunidades indígenas e as mineradoras responsáveis pelo crime de novembro de 2015 contra o Rio Doce, quando as empresas não aceitaram nenhuma das reivindicações das comunidades.
O objetivo do pedido foi obter elementos técnicos sobre o Auxílio de Subsistência Emergencial (ASE), programa equivalente ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) pago aos atingidos não indígenas, e sobre o programa de Retomada Econômica, o primeiro, suspenso unilateralmente pela Renova há mais de um ano e só restabelecido após a ocupação de 43 dias dos trilhos da Vale no final de 2022, porém, mantido sob condições impróprias, na avaliação das comunidades. O segundo, alvo de diversos entendimentos errôneos por parte da Fundação, conforme exposto pelos indígenas, pelo Conselho Territorial de Caciques e, detalhadamente, explicado na nota técnica da Funai.
Essas e outras distorções em curso foram o motivo da segunda ocupação da ferrovia que corta o território indígena, onde as comunidades passaram a chamar o acordo de “acordo-desastre”, visto que as múltiplas violações de direitos que ele contém constituem uma nova tragédia socioambiental para as Terras Indígenas (TIs) atingidas.
Iniciada no dia 17 de setembro, após diversas tentativas frustradas de negociação com as mantenedoras da Renova, a ocupação foi suspensa no dia 13 de outubro, em respeito ao compromisso assumido pelo juiz do caso em retomar as mediações com as empresas a fim de cessar as violações e chegar a um novo acordo, que contemple as necessidades das comunidades.
Na nota técnica, a diretora da DPDS da Funai, Lucia Alberta Andrade de Oliveira, explica ao procurador federal, Terence Carvalho de Almeida Castro, que com o pedido de informações, o juiz da 4ª Vara Federal promove “uma via com o objetivo de corrigir erros e oportunizar eventuais possibilidades conciliatórias, a fim de proporcionar o início de um ciclo de recuperação econômica das comunidades indígenas, ao tempo em que possa ser capaz também de contribuir para um processo de recuperação psicológica e social”.
O documento se baseia no Estudo do Componente Indígena (ECI), que “sistematizou a relação entre as alterações ambientais, os serviços ecossistêmicos prioritários afetados e impactos sobre o modo de vida e territorialidade Tupinikim e Guarani” e demonstrou que “muitos desses serviços ambientais não podem, e não se sabe quando poderão ser acessados”, e que, portanto, “a subsistência dessas comunidades se encontra comprometida em um período ainda não conhecido, cabendo que os programas estruturantes sejam elaborados para o enfrentamento dos danos, ainda pendentes de construção”.
Os programas estruturantes, destaca a diretora, devem ser elaborados no contexto do Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI). Já o ASE e o Programa de Retomada Econômica, consistem em ações emergenciais e precisam de ajustes para dotar as comunidades de condições dignas de sobrevivência até que as ações estruturantes sejam elaboradas e implementadas e comecem a surgir efeito. Condições dignas que, ressalta, precisam evitar a erosão da coesão social do território, com exclusão de indivíduos e famílias inteiras, “em decorrência da necessidade de busca por fontes de renda externas à sua territorialidade”.
Ao descrever a extensão dos impactos provocados pelos rejeitos vazados da barragem de Fundão, a diretora afirma que ela abrange “desde a margem direita do Rio Doce (entrada do Canal Caboclo Bernardo e nascente do rio Comboios) até a margem esquerda do rio Piraquê-Açu (num contínuo dimensionado pela territorialidade afirmada pelo Povo Tupinikim e Guarani) e inclui a área de pesca no mar até a captação no Rio Doce para alimentação do Canal Caboclo Bernardo, sendo delimitada ainda a leste pelas áreas de nascentes dos rios que cortam a TI Tupinikim e Guarani”.
Já a noção de territorialidade, explica, “ultrapassa os limites administrativos estipulados pela demarcação oficial das Terras Indígenas [e] evidencia-se principalmente pelo trânsito entre as aldeias, as relações de parentesco, as relações sociopolíticas, redes de trocas de recursos, dinâmicas de mobilidade, casamentos e constantes migrações, estabelecidas ao longo da história da presença das duas etnias no território”.
O documento elenca alguns exemplos concretos da territorialidade indígena, como os constantes casamentos entre moradores da Aldeia Pau Brasil e da TI Comboios, e trocas de presentes entre parentes de Comboios e Caieiras Velha, entre outras práticas tradicionais.
“Às margens do rio Piraqueaçú, conflitos eram solucionados durante a cata de mariscos, uma vez que a necessidade de ajuda entre famílias reaproximava os conflitantes; também era o local de troca de saberes, recreação etc. E podemos citar ainda que era uma prática compartilhada constante o ‘fachear’, isto é, a cata de mariscos e moluscos no baixa mar, onde os animais ficavam presos em piscinas; os indígenas formavam grupos de jovens e adultos para executar essa prática. Esses exemplos ilustram de forma exemplificativa os constantes intercâmbios e fluxos de mobilidade (sociais, culturais, gênicos e ecológicos) na territorialidade Tupinikim e Guarani”.
Juventude
Sobre os jovens, o documento explica a inobservância de algumas tradições, como a da permanência das gerações mais novas na casa dos pais mesmo após a constituição de suas próprias famílias, e, por outro lado, a manutenção de vínculo com as aldeias dos jovens que saem do território para estudarem. Inobservâncias que, “inevitavelmente [forçam] a dissolução de tal coesão [social tradicional], o que implica indiretamente uma intervenção na organização social indígena”.
Em síntese, pontua a diretora da Funai, “se o sistema de pagamento do ASE se utiliza da lógica de formação familiar, deve-se considerar as particularidades desta composição no seio dos povos originários, que muitas vezes destoam do modelo da família tradicional. No processo de reconhecimento dos impactos e critérios de elegibilidade para o pagamento do ASE, a Fundação Renova utilizou sistema alheio à organização social das comunidades indígenas de Aracruz. Esse sistema acaba não abarcando a contento as comunidades indígenas”.
Premissas da estabilização econômica
Sobre o programa de retomada econômica, o documento enfatiza a necessidade de que seja implementado a partir de nove premissas, que atendam primeiramente ao entendimento de tratar-se de uma ação também emergencial, como o ASE, visto que as ações estruturantes ainda serão definidas no PBAI, sendo por isso necessário passar a chamá-lo de Instrumento Complementar para a Estabilização Econômica.
A partir daí, as premissas estabelecem que o Instrumento deve ter um tratamento independente em relação ao ASE e às futuras ações estruturantes, uma vez que cada um desses compõem o que, “em direito internacional dos desastres, tem se chamado de ‘buquê de remédios”. Incluem a necessidade de elaborar “um adequado planejamento, com metodologia e cronograma de repasse, e com sua delimitação a partir de três Eixos: Despesas Judiciais; Correção de Repasses Financeiros; e Espécies Restantes (Retroativas e Correções Monetárias)”. E afirmam a necessidade de participação das comunidades, com acompanhamento do juízo, na definição de valores a serem pagos em cada eixo.
Próximos passos
A próxima audiência está prevista para o dia 10 de novembro, mas as partes aguardam a confirmação do juízo, que deve proceder as intimações. A homologação de um novo acordo de indenização e compensação dos danos é o que as comunidades indígenas desejam, para que não seja necessária uma nova ação extrema, de ocupação dos trilhos. “A gente espera conseguir um consenso para continuar os diálogos”, afirma Joel Monteiro, presidente da Associação Indígena Tupinikim Caieiras Velha (AITCV).