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Ilhas, restingas e alagados capixabas ameaçados pelo ministro do Meio Ambiente

Proposta de redução de proteção da Mata Atlântica pode piorar os efeitos da crise climática no Estado

Hudson Pinheiro

O Espírito Santo possui mais de 400 km de litoral, inúmeras ilhas costeiras, importantes ilhas oceânicas e uma área continental onde ainda resistem alguns dos mais ricos fragmentos florestais e o maior remanescente de floresta atlântica de tabuleiro do país, além de coexistirem uma das maiores diversidades de formações naturais associadas à Mata Atlântica – bioma brasileiro mais ameaçado e um dos 34 hospots do planeta, classificação dada aos ecossistemas mais biodiversos e desmatados do mundo. 

Com tamanha importância e fragilidade, a Mata Atlântica capixaba – incluindo todos os seus ecossistemas associados – pode sofrer perdas irreparáveis caso a proposta do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (Novo), de alteração do decreto que regulamenta a Lei da Mata Atlântica, seja aprovada pelo presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido).

A proposta foi formalizada pelo Despacho nº 4.410/2020 do ministro do Meio Ambiente, publicado no Diário Oficial da União em seis de abril, e visa excluir várias formações vegetais do texto do Decreto nº 6.660/2008, que regulamenta a Lei nº 11.428/2006 – a Lei da Mata Atlântica, aprovada após 14 anos de construção que envolveu ONGs, municípios, estados e o Congresso Nacional. 


As formações que Salles quer extirpar do domínio da Mata Atlântica são “campos salinos e áreas aluviais, refúgios vegetacionais, áreas de tensão ecológica, áreas de estepe, savana, savana-estépica, e vegetação nativa das ilhas costeiras e oceânicas”. Além disso, sua proposta também é de suspender a necessidade de anuência do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a concessão de licença para desmatamentos de vegetação primária em estágios médio e avançado de regeneração. Na zona rural, essa ausência do Ibama passaria de 50 para 150 hectares e, na urbana, de três para 30 hectares.

Para o prof. Dr. Mário Garbin, do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a proposta de Salles é especialmente perigosa para o Espírito Santo por dois aspectos: a enorme pressão para desmatamento sobre os remanescentes florestais já tão pequenos do Estado, e a intensa fragilização que ela impõe às restingas, que são a formação vegetal típica de praias e dunas.

Cerca 40% dos fragmentos florestais do Estado têm menos de 100 hectares, explica Mário. E 80% deles possuem área igual ou inferior a 50 hectares. “Quaisquer ampliações de desmatamentos fragilizam ainda mais ambientes que dão sinais claros de perda de capacidade de se recuperarem frente a mais agressões”, alerta.

Sobre as restingas pesa o fato de possuírem uma capacidade de regeneração natural bastante baixa. “Estudos que fizemos no Parque Estadual Paulo Cesar Vinha mostram que mesmo após 16 anos de um distúrbio causado por mineração de areia, a vegetação nas áreas em regeneração ainda é muito diferente daquela observada em áreas preservadas”, relata. 


“É um enorme retrocesso”, exclama o pesquisador. “Em tempos de mudanças climáticas, isso ganha uma proporção ainda maior dado o papel das florestas no controle dos sistemas de suporte à vida. Isso nos afetará diretamente com a perda de qualidade dos solos, da água, e demais serviços ecossistêmicos”, explica. “Num estado que sofre cada vez mais com enchentes e secas, cada hectare preservado faz diferença”, ressalta.

Rio Doce

Outra formação natural de grande importância para o desenvolvimento sustentável do Espírito Santo que está na linha de frente dos ataques do ministro é a Planície Costeira do Rio Doce, que se estende desde a Barra do Riacho, em Aracruz, até Conceição da Barra, no norte do Estado, e no sentido oeste avança até a sede do município de Linhares, incluindo o Vale do Suruaca e suas áreas pantaneiras, além das matas de aluvião do Rio Doce, que protege a maior área de produção de cacau do Estado. 

São cerca de 300 mil hectares de um conjunto de ecossistemas extremamente frágeis, biodiversos e ameaçados, que recebem influência direta do Rio Doce, cuja foz está na comunidade de Regência, em Linhares. A área é seis vezes maior que a soma das Reservas Biológica de Sooreetama e Natural da Vale, também em Linhares, o maior remanescente de Mata Atlântica de Tabuleiro do país. 

Ilhas costeiras e oceânicas

Nas ilhas costeiras e oceânicas, outro grande problema. O litoral capixaba é rico em ilhas, sendo mais conhecidas as de Vitória, Vila Velha e Guarapari, além da Ilha dos Franceses, em Piúma, algumas delas já estabelecias como unidades de conservação e outras em processo de criação de UCs.

A importância ecológica – são as principais áreas de reprodução de andorinhas-do-mar –, o grande número de espécies endêmicas (que só existem nessas ilhas e em nenhum outro lugar do mundo) e o potencial para desenvolvimento de atividades econômicas mais sustentáveis a partir principalmente do turismo ecológico, são motivos de preocupação para os pesquisadores diante da ameaça proposta pelo ministro Salles.

“Fragilizar as leis de proteção nesses ambientes coloca nossa biodiversidade em risco muito grande”, alerta o oceanógrafo Hudson Pinheiro, cientista da Academia de Ciências da Califórnia e membro da Associação Voz da Natureza e da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

Hudson também chama atenção para as ilhas oceânicas, como o arquipélago de Trindade e Martim Vaz, localizado a 1,2 mil km de distância de Vitória e que abriga uma base da Marinha do Brasil. Junto com os também oceânicos arquipélagos de Fernando de Noronha/ Pernambuco, e de São Pedro e São Paulo/Rio Grande do Norte, formam as principais áreas de reprodução das tartarugas marinhas da espécie verde, as mais comuns no litoral capixaba, que, na idade juvenil, procuram as praias para se alimentarem.

“Desqualificar o estado de preservação dessas regiões bem únicas e bem vulneráveis pode causar um impacto muito grande e irreversível nessas ilhas oceânicas”, diz. 


Menos 110 mil km²

Em âmbito nacional, a minuta de decreto do ministro pode reduzir em 10% a área total do bioma existente nos 17 estados sob sua influência, ou cerca de 110 mil km². Desde a última sexta-feira (24), a ameaça tem mobilizado as principais entidades ambientalistas brasileiras para orientarem deputados e senadores no sentido de vetar a proposta, caso ela seja de fato encaminhada para apreciação tramitação no Congresso Nacional. 


“Salles argumenta que isso trará maior eficiência ao licenciamento ambiental e afasta insegurança jurídica. É um paradoxo arguir proteção facilitando a supressão da vegetação e reduzindo a área de aplicação da lei”, contesta a Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) em nota pública. “O que pretende o ministro é reduzir artificialmente a área de abrangência da Mata Atlântica e, literalmente, retirá-la do mapa. Salles está tirando a Mata Atlântica do mapa. Inaceitável”, repudia a Rede, que “conclama suas entidades a envidarem todos os esforços para evitar que a mesma se efetive”.

Uma das ONGs da Rede, a Fundação SOS Mata Atlântica, revela, em sua página na internet, que “por trás destas supressões no bioma está o interesse do setor imobiliário em utilizar essas áreas para a construção de novos empreendimentos”. “É inacreditável, não há outra palavra. Voltamos à década de 1960, quando os governantes estavam a serviço de um modelo insustentável de crescimento”, afirma Mario Mantovani, diretor de Políticas Públicas, da SOS.

A entidade também é citada na nota técnica do Observatório do Clima elaborada por Suely Araújo, em que a recomendação final é para que a SOS Mata Atlântica e/ou outras organizações dedicadas à proteção do bioma questionem na esfera judicial a recente decisão do governo federal, no prazo mais breve possível.

“Há diferentes caminhos para isso, com apoio ou não do Ministério Público. Como a proteção do bioma Mata Atlântica tem fundamento explícito na Constituição Federal e apresenta relação direta com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado assegurado pelo art. 225, caput, de nossa Carta Política, cabe avaliar a possibilidade de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o Supremo Tribunal Federal (STF)”, orienta.

Nesse sentido, a SOS mobiliza ambientalistas e a sociedade civil interessada no tema a acompanhar a reunião da Frente Parlamentar Ambientalista que acontece nesta quarta-feira (29), às 11h, e abordará “com vários especialistas a manutenção da Lei da Mata Atlântica, evitando a alteração dos limites do Bioma e a ampliação do desmatamento”. A reunião é aberta e poderá ser acessada neste link

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