Centralidade na vítima será o tom das próximas decisões da Justiça Federal, afirma procurador da República
Uma vitória histórica para os atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP no litoral norte do Espírito Santo, que marca o início de uma “guinada” judicial em favor das vítimas. A análise é do procurador da República em Minas Gerais, Felipe Augusto de Barros Carvalho Pinto, chefe da Força-Tarefa do Rio Doce no Ministério Público Federal (MPF), ao comemorar a decisão tomada na noite dessa quarta-feira (24) pelo Tribunal Regional Federal da Sexta Região (TRF6). Por unanimidade, com 3 x 0, os desembargadores determinaram a inclusão de todas as comunidades costeiras capixabas localizadas entre os municípios de Serra e Conceição da Barra, nos programas de compensação e reparação dos danos decorrentes do crime de 2015.
A inclusão consta na Deliberação nº 58, publicada pelo Comitê Interfederativo (CIF) em 2017, mas que até hoje não foi cumprida pela Fundação Renova, atual responsável pela execução dos programas definidos no primeiro acordo extrajudicial firmado entre as mineradoras, os governos federal e estaduais e as instituições de justiça, em março de 2016, o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).
Para Felipe, essa foi a primeira de uma série de decisões que o TRF6 passará a proferir, a partir de uma perspectiva que vem sendo pleiteada pelos movimentos sociais e instituições de Justiça – MPs e Defensorias Públicas, que formam a força-tarefa – há muito tempo.
“Essa vitória recoloca as rédeas do processo de reparação nas mãos do estado. Coloca o poder de dar as diretrizes [para atuação] da Fundação Renova nas mãos do CIF. CIF esse que deve ser ocupado pelos atingidos e pelas instituições de Justiça, e será cada vez mais ocupado, para que a gente faça valer a centralidade da vítima, do atingido, no processo de preparação. Essa vitória é só o começo de um processo que, espero, seja para obter uma reparação mais efetiva e mais rápida”, destacou.
O procurador acrescenta que, “hoje, começamos com o Espírito Santo, mas a decisão vai valer para todas as deliberações do CIF. Tem muita coisa que ficou sem cumprimento e a gente vai atrás disso”.
As declarações foram feitas logo após o término do julgamento, em meio às comemorações dos atingidos do lado de fora do TRF6, levados para Belo Horizonte pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Mais de vinte comunidades costeiras
O julgamento se deu na 4ª Turma do TRF6, no âmbito de um agravo de instrumento apresentado pelas empresas Samarco, Vale e BHP contra uma decisão que havia incluído cinco municípios capixabas nos programas de reparação e compensação. No recurso, as mineradoras pediam o reconhecimento da necessidade de uma perícia para validar uma deliberação do Comitê Interfederativo (CIF), que incluiria áreas afetadas alegadamente novas.
“Após avaliar os recursos propostos, o relator e presidente da 4ª Turma, desembargador federal Ricardo Rabelo, concluiu que os atos do CIF, enquanto típicos atos administrativos sob o ponto de vista jurídico, eram plenamente válidos, e que, portanto, as empresas rés deveriam se submeter a eles, salvo em caso de flagrante ilegalidade”, informa o TRF-6. Sua relatoria foi seguida pelos demais membros da 5ª turma, os desembargadores federais Simone S. Lemos e Lincoln Rodrigues de Faria.
Originalmente, o TTAC previa 35 municípios em Minas Gerais e cinco no Espírito Santo. Com a decisão unânime da 4ª Turma do TRF6, foram reconhecidos os seguintes municípios e localidades capixabas: São Mateus (Urussuquara, Campo Grande, Barra Nova Sul, Barra Nova Norte, Nativo, Fazenda Ponta, São Miguel, Gameleira e Ferrugem); Linhares (Pontal do Ipiranga, Barra Seca, Regência, Povoação e Degredo); Aracruz (Portal de Santa Cruz, Vila do Riacho, Rio Preto, Barra do Sahy e Barra do Riacho); Serra (Nova Almeida); e Conceição da Barra.
PNAB
Um pouco antes do julgamento, o procurador se reuniu com militantes do MAB, onde afirmou a necessidade de implementação da Deliberação 58/2017 e do Judiciário efetivamente atuar numa perspectiva de centralidade na vítima, à luz da Política Nacional de Atingidos por Barragens (Pnab) – Lei nº 14.755/2023 – sancionada pelo presidente Lula (PT) em dezembro passado. Segundo Felipe Barros, a PNAB é sim aplicável aos processos em curso, como os crimes da Vale em Mariana e Brumadinho.
“Nós, instituições de Justiça, não temos a menor dúvida que a nova lei da PNAB é aplicável aos processos em curso”, afirmou, conforme divulgado pelo MAB. A aplicação da lei, ressaltou, “reforça a necessidade de participação dos atingidos, com estruturação dos comitês”.
Nesse sentido, a força-tarefa tem atuado em várias frentes, em um trabalho judicial que corre paralelo à Repactuação, liderada pelo governo federal. As frentes incluem contratação de expert, orçamento dos atingidos, contratação das Assessorias Técnicas Independentes (ATI’s), consolidação das Comissões, reestruturação do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) e condenação pelos danos morais.
Repactuação
“A gente espera que esse seja um ano de bons resultados e mudanças, e concretização de direitos que ficaram pelo caminho, independentemente de qualquer conversa sobre Repactuação. Pelo MPF, o que posso dizer é que as conversas estão paralisadas. E venho trabalhando como se esse acordo não existisse. No futuro, se vier, se for favorável e do nosso interesse o acordo de Repactuação, um bom acordo que leve em conta a participação e fatos novos que surgiram desde as últimas negociações, como contaminação dos alimentos e a lei da PNAB“, ressaltou.
A implementação da Deliberação 58/2017 também era pré-condição para que o governo do Estado retomasse as negociações no âmbito da Repactuação, conforme declarou o procurador-geral capixaba, Jasson Hibner Amaral, durante reunião com a comunidade quilombola de Degredo, em Linhares, que exigiu o atendimento de todas as comunidades quilombolas atingidas pelo crime.
Ações internacionais
Nessa segunda-feira (22), os atingidos já haviam se reunido com a presidente do TRF6, desembargadora federal Mônica Sifuentes, além de deputados estaduais e federais, tratando de pautas como a implementação da Deliberação nº 58/2017 e a Repactuação.
Na ocasião, Mônica Sifuentes explicou que o TRF6 estava empenhado em dar agilidade à tramitação processual e aos acordos desses processos. “O ideal seria que todas as partes alcançassem um acordo rapidamente, evitando nossa dependência dos resultados dos processos na Inglaterra, o que compromete a percepção sobre a eficácia da Justiça brasileira. É essencial que resolvamos essa questão dentro do nosso próprio sistema judiciário,” afirmou.
A desembargadora federal também informou à comitiva que já havia visitado a região atingida algumas vezes. “Estamos bastante cientes do que vocês estão sofrendo e estamos bem sensibilizados com esta luta. O Tribunal está atuando para que esses processos tramitem rapidamente, a fim de chegar, enfim, a uma situação de compensação para todos”.
O coordenador da Comissão Externa sobre Fiscalização do Rompimento de Barragens, deputado federal Rogério Correia (PT/MG), destacou a dificuldade de acordo com as mineradoras dentro da repactuação. “A última proposta apresentada pela empresa Samarco, Vale e BHP foi muito aquém do que era exigido pelos governos federal, estaduais e Ministério Público. Algo em torno de R$ 126 bilhões, e ofereceram R$ 42 bilhões”.
Nova proposta
Relator da Comissão Externa da Câmara, o deputado federal Helder Salomão (PT) afirma que há expectativa de um avanço em breve nas negociações. “A expectativa do governo é de que as empresas apresentem uma nova proposta em breve, nos próximos dias, e a gente espera que seja decente, para retomar a discussão sobre a repactuação. Não tem dialogo possível se o valor não for superior a R$ 100 bilhões. Qualquer valor inferior a isso, a nosso ver, traz prejuízos ainda maiores para atingidos e atingidas”.
Helder acrescenta outros três pontos fundamentais para que as negociações possam ser retomadas: garantia de participação dos atingidos nas decisões; garantia de que o dinheiro seja utilizado nas áreas atingidas; a instalação de uma nova governança, com extinção da Fundação Renova e protagonismo do governo federal junto com as instituições de Justiça e atingidos.
“É o mínimo que se pode ter para garantir minimante uma reparação justa e integral, por mais que, na prática, a reparação total nunca acontecerá, porque foram vidas perdidas, meio ambiente perdido. Nem com um recurso dez vezes maior que esse, nem com qualquer outra medida. Mas essas são condições mínimas para que a repactuação avance”.