Anúncio foi feito durante evento em Brasília. Dos 16 limites descritos na portaria, oito são com a Suzano
A comunidade quilombola de Linharinho, em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo, teve seu reconhecimento oficializado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por meio da Portaria 495, de 15 de maio de 2024. O anúncio foi feito nesta quinta-feira (16), durante o II Aquilombar, evento nacional de mobilização quilombola realizado em Brasília.
A portaria destina uma área de 3,5 mil hectares para a comunidade, equivalente à do Parque Estadual de Itaúnas, no mesmo município. Na descrição dos limites oficiais, oito dos 16 são com a multinacional Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria). Outros limites são as Rodovias ES-010, ES-416 e ES-421, e pessoas físicas. A presença incisiva da papeleira evidencia o quanto os monocultivos de eucalipto, chamados de “deserto verde”, de fato fazem um cerco às comunidades do Território Quilombolas do Sapê do Norte, que se estende também pelo município de São Mateus.
Das 34 comunidades reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) no Sapê, 22 têm processos em andamento no Incra, sendo Linharinho a primeira a ter sua portaria de reconhecimento, que é publicada com base no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
O próximo passo no caminho da titulação definitiva da comunidade – situação só alcançada até agora por um quilombo capixaba, em Ibiraçu – é a definição das áreas que serão desapropriadas ou doadas à comunidade, em caso de identificadas como patrimoniais ou devolutas, explica a advogada popular quilombola Josi Santos, que integra a comitiva capixaba no II Aquilombar.
“Tem um longo trajeto ainda”, avalia, com base na resistência histórica da empresa em recuar seus monocultivos de dentro dos territórios quilombolas e, ao contrário, continuar avançando sobre eles, secando córregos, nascentes e lagoas, destruindo a biodiversidade e fomentando diversas violências contra as comunidades, inclusive por parte de suas empresas de vigilância patrimonial e até da Polícia Militar.
Caso a Suzano insista em não recuar, mesmo com a publicação da portaria 495, caberá à Justiça decidir. “Temos uma ação judicial em andamento, que afirma que a aquisição de matrículas pela Suzano dentro do Sapê do Norte foi feita de maneira ilegal, por meio de grilagem. Resolvido esse ‘embaraço’ o Incra vai poder enfim emitir o título coletivo para a comunidade”, ressalta. “Nesse sentido, avalio que talvez São Cristóvão e Serraria consigam o título primeiro, já que tem decisão judicial favorável a ser cumprida”, complementa, referindo-se a outra comunidade do Sapê do Norte, com RTID pronto para ser publicado.
Aquilombar
O II Aquilombar acontece durante toda esta quinta-feira, sob o tema “Ancestralizando o Futuro”, com uma variada programação, incluindo assistência jurídica, feira agroecológica e manifestações da juventude e da comunidade LGBTQIAPN+, levadas por caravanas de 24 estados da federação onde há a presença da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
O objetivo é “dar visibilidade às comunidades quilombolas que lutam pelo direito à titulação dos seus territórios e outras políticas públicas que são necessárias para o nosso povo”, resume Josi Santos. O encerramento do evento será com uma grande marcha passando pela Esplanada dos Ministérios, até o Palácio do Planalto.
A primeira edição aconteceu em de agosto de 2022 e a segunda estava prevista para agosto de 2023, porém foi suspensa. “Em vista de várias violências que ocorreram em alguns quilombos do Brasil, incluindo o assassinato da Babalorixá Mãe Bernadete, na Bahia, que foi mais midiatizado”, explica.
Haverá mundo?
Um estudo publicado pela ONG Terra de Direitos mostrou que, se mantido o ritmo atual, o Brasil levará 4,7 mil anos para titular todos os territórios quilombolas inscritos no Incra. E com isso pergunta: “Haverá mundo [quando essa meta for cumprida]?”
“Em 36 anos, desde a promulgação da Constituição Federal, apenas 24 quilombos receberam o título de toda a área do território e outros 33 receberam o título de apenas parte da área que as comunidades têm direito (titulação parcial). A estimativa deste ano sofreu um aumento de 520 anos em relação à feita em 2023.
“Esse aumento é resultado do crescimento do número de processos abertos no Incra no último ano e da não resposta adequada do Estado brasileiro à demanda represada anteriormente. Em 2023, por exemplo, cinco territórios quilombolas foram titulados – quatro deles de maneira parcial, e apenas um recebeu o título por todo território. Ainda que bastante reduzido em relação à totalidade da demanda, os títulos emitidos no último ano representam um avanço em relação ao que foi executado no governo de Jair Bolsonaro (PL). Apenas em 2023 foram titulados praticamente o mesmo número de territórios que entre 2018 e 2022, quando apenas seis quilombos receberam o título”, compara a entidade.
Roda de conversa
A titulação dos territórios quilombolas de São Mateus e Conceição da Barra, bem como a implementação das políticas públicas a que elas têm direito, será tema de um debate em Vitória, na próxima quarta-feira (22). A Roda de Conversa Território Quilombola do Sapê do Norte: Resistência e Luta por Direitos acontece no Museu Capixaba do Negro (Mucane), a partir das 19h.
“Convidamos representantes de instituições de direitos humanos, de órgãos do governo, como Incra, Defensoria Pública Estadual, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e entidades parceiras, como Fase, Movimento Nacional de Direitos Humanos e Movimento Negro Unificado. Vamos tentar construir, junto com as comunidades quilombolas, um instrumento que possa dar viabilidade a algumas ações que já estão correndo na Justiça ou talvez ajuizar outras. Mas será feito em conjunto. O protagonismo é das comunidades quilombolas, devemos o respeito a elas, fazendo jus à Convenção 169 da OIT”, expõe.
Inscrições podem ser feitas por meio de formulário online.