Assembleia geral reúne número maior de manifestantes desde o início da ocupação dos trilhos da Vale
No décimo dia de ocupação indígena dos trilhos da Vale que atravessam a comunidade Córrego do Ouro, em Aracruz, norte do Estado, uma assembleia geral reuniu um número recorde de manifestantes, oriundos de cinco aldeias Tupinikim.
Homens, mulheres, idosos e crianças mantêm o protesto sobre os trilhos, reafirmando a decisão das comunidades de só desmobilizar a ocupação mediante abertura de diálogo por parte das mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, para fins de revisão do acordo que foi assinado há um ano com a Fundação Renova, com medidas de reparação e compensação dos danos causados pelo crime socioambiental cometido contra o Rio Doce – o maior do país e da mineração mundial – em novembro de 2015.
Um dos encaminhamentos foi a elaboração de uma nota de repúdio endereçada à Fundação Nacional do Índio (Funai), assinada por mais de 200 pessoas presentes, em nome das três aldeias que iniciaram o protesto: Comboios, Córrego do Ouro e Caieiras Velha.
“Manifestamos nosso repúdio diante da ausência e omissão da Fundação Nacional do Índio (Funai) em relação à manifestação das comunidades indígena que ocorre na Aldeia Córrego do Ouro, onde estamos desde o dia primeiro de setembro reivindicando nossos direitos violados pela Fundação Renova e suas mantenedoras (Vale, BHP Billiton e Samarco)”.
A nota também faz menção direta à truculência jurídica da mineradora proprietária da ferrovia, que, além de não dialogar com as comunidades, requereu e conseguiu da Justiça Estadual, por duas vezes ao longo da manifestação, mandado de reintegração de posse com previsão de multa em valor esdrúxulo: R$ 5 mil por pessoa, por minuto de descumprimento da liminar, assinada pelo juiz Fabio Luiz Massariol, da 1ª Vara Cível, Família e de Órfãos e Sucessões de Aracruz.
“Queremos manifestar nosso repúdio diante do desrespeito a nós, povo originário deste território, pois é desumano recebermos notificação por liminar de reintegração de posse, obrigando a nos retirarmos do nosso território. Até a presente data, não houve retorno e manifestação por parte da Funai diante das nossas reivindicações em que foi dada ciência através das manifestações e reuniões, na qual solicitamos apoio desta instituição hoje e anteriormente, através de número de celular reiteradas vezes neste ato reforçamos que chamamos para a responsabilidade em que a Funai não pode se omitir, uma vez que esta instituição tem por dever proteger e promover nossos direitos, bem como monitorar e fiscalizar o território indígena, direitos esses que foram adquiridos através de lutas travadas através de um longo histórico”.
Na ocasião da entrega do segundo mandado de reintegração de posse, nesta sexta-feira (9), os indígenas reafirmaram que o atraso na presença de representantes das mineradoras implicará na retirada dos trilhos que atravessam a comunidade. Em vídeo, lideranças das três aldeias mandaram um aviso diretamente para a proprietária da ferrovia: “Eu quero mandar um recado aqui especialmente para a Vale: se você não vir conversar com nós, a partir da semana que vem o trilho deixará de passar dentro da aldeia indígena de Comboios”, declarou o Cacique Toninho, de Comboios.
Famílias fragilizadas
A revisão do acordo feito com a Renova é necessário, afirmam os indígenas, devido ao não cumprimento de preceitos estabelecidos na Constituição Federal e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada, mediante ações e obras que causem impacto sobre os povos tradicionais.
Ao contrário, o acordo foi feito de forma não dialogada, levando muitas famílias a assinarem sem ter pleno conhecimento das cláusulas e direitos, pressionadas pela fragilidade social, econômica e ambiental imposta pela contaminação do território com os rejeitos de mineração que vazaram da represa de Fundão, da Samarco/Vale-BHP há quase sete anos, e lançaram cerca de 50 milhões de metros cúbicos de lama tóxica sobre mais de 600 km de leito do Rio Doce e o litoral capixaba.
“Algumas famílias assinaram esse acordo porque estavam precisando mesmo, algumas até que não sabem ler, não entendem o que era o acordo de verdade. Não houve consulta livre, prévia e informada. A Renova nunca conversou com as famílias. Há muitos vícios dentro desse processo”, expôs a jovem Geane Estella Borges, de Caieiras Velha, por ocasião da entrega do mandado de reintegração de posse.
Ferrovia e Canal Caboclo Bernardo
À Vale também é reivindicado que elabore o Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) referente ao licenciamento ambiental da ferrovia que atravessa a TI Comboios. Segundo as comunidades, a entrega está atrasada doze anos.
Um PBAI e um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) também é devido pela Suzano (ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose), em razão da construção do Canal Caboclo Bernardo, em 1999, que desvia água do Rio Doce para o Rio Riacho, onde uma represa retém água para abastecer as fábricas de celulose da multinacional em Barra do Riacho.
Desde sua implementação, o canal agrava o problema hídrico na comunidade pesqueira e nas comunidades indígenas, que já vinha crescendo à medida que os monocultivos de eucalipto da papeleira avançam sobre o território, hoje estimado em 300 mil hectares em todo o Estado, sendo o uso do solo que mais cresce há trinta anos.
Além de escassez de água, o crime da Samarco/Vale-BHP trouxe também a contaminação por metais pesados, pois o canal Caboclo Bernardo lança os contaminantes do Rio Doce sobre os rios Riacho e Comboios, o que levou a Renova a providenciar abastecimento de água potável às famílias atingidas.
‘A Vale não tem responsabilidade social e ambiental’
A coragem dos povos originários de Aracruz de exigir direitos negados pelas duas maiores mineradoras do mundo (BHP e Vale) se dá num momento crítico em que as duas empresas são declaradas como ausentes de responsabilidade social e ambiental. Em comunicado conjunto, elas são acusadas de inviabilizarem a repactuação do acordo de reparação e compensação firmado em março de 2016 (o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta), processo liderado há 14 meses pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No documento, os governos estaduais do Espírito Santo e Minas Gerais e as seis instituições de justiça envolvidas na repactuação – ministérios públicos federal e estaduais dos dois estados e defensorias públicas da União e de ambos estados – afirmam que “a postura das empresas evidenciou, até o presente momento, descompromisso com práticas de responsabilidade social e ambiental”.
Os valores e prazos propostas pelas mineradoras, afirmam, inviabilizam a continuação das negociações. “É evidente, portanto, que houve o desvirtuamento, por parte das poluidoras, das premissas de celeridade e de definitividade, firmadas na Carta de Premissas de 22 de junho de 2021”. O caminho, afirmam, é a judicialização da demanda por um novo acordo.
Justiça britânica
Na Inglaterra, a BHP recebeu mais uma derrota no último dia 31 de agosto, quando a Corte de Apelação do Reino Unido rejeitou o recurso feito pela mineradora para recorrer à Suprema Corte contra a permissão dada para que ela seja julgada por sua responsabilidade na tragédia.
O processo é movido pelo escritório Pogust Goodhead em favor de mais de 200 mil vítimas capixabas e mineiras. Impetrada em 2018 com o valor de cinco bilhões de libras esterlinas – atualizados hoje para cerca de 31 bilhões de reais – a ação chegou a ser negado pela Justiça do Reino Unido, mas, após nova análise, foi aceita no dia oito de julho passado.