“A gente vai continuar pressionando para que a Funai permaneça no Ministério da Justiça”, afirma Paulo Tupiniquim, liderança na aldeia Caieiras Velha, em Aracruz, norte do Espírito Santo, e coordenador-geral da Articulação dos Povos e organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), ao retornar de Brasília/DF, onde participou da mobilização de indígenas de todo o país junto à equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).
A mobilização continua e uma nova ação está prevista para acontecer nos primeiros dias de janeiro, com a deputada federal indígena eleita Joênia Wapichana (Rede/RR) e outros aliados, para traçar estratégias que visem evitar a migração da Fundação Nacional do Índio para o futuro Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a ser comandado pela ex-assessora do senador Magno Malta (PR), Damares Alves.
“Pra nós não é uma coisa boa”, enfatiza Paulo, referindo-se às declarações que têm sido feitas por Bolsonaro e Damares com relação às nações indígenas brasileiras, explicitando total falta de conhecimento sobre os direitos constitucionais dos povos originários.
Notícia divulgada nessa sexta-feira (7), no Estadão, denuncia Damares por ser fundadora de uma ONG que é acusada pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal de promover “dano moral coletivo decorrente de suas manifestações de caráter discriminatório à comunidade indígena”, em função da divulgação de um filme sobre infanticídio indígena feito pela organização. Em uma ação civil pública impetrada em 2015, os procuradores pedem que a ONG – Movimento Atini Voz pela Vida – seja condenada a pagar R$ 1 milhão.
Por meio da ação, o Ministério Público Federal (MPF) exige que a ONG de Damares Alves seja proibida de veicular o vídeo documentário “Hakani – A história de um sobrevivente”. O filme, segundo o MPF, tinha o objetivo de “chamar atenção acerca do tema ‘infanticídio indígena’ e legitimar as ações missionárias no interior das comunidades indígenas”.
O histórico de atuação irresponsável e ilegal de Damares, suas pretensões à frente do novo Ministério, bem como de Bolsonaro são repudiadas na Carta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que foi entregue nessa quinta-feira (6) à equipe de transição do futuro presidente, que se negou a receber a comitiva de lideranças indígenas.
Constituição Federal
As declarações recentes de ambos são classificadas, no documento, como “afirmações que maculam a imagem e dignidade dos nossos povos e comunidades e que preocupam por demonstrarem, por um lado, a falta de conhecimento sobre nossos direitos constitucionais, e por outro, uma visão de indigenismo assimilacionista, retrógrado, autoritário, preconceituoso, discriminador, racista e integracionista, afastado de nosso país há mais de 30 anos pela Constituição Cidadã de 1988”.
A Carta também dá uma verdadeira aula de direitos indígenas constitucionais, apontando as principais afrontas ao artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
“A Constituição Brasileira de 1988, Excelentíssimo Senhor Presidente, no Artigo 231, é taxativa: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Além de reconhecer a diversidade étnica e cultural do país, do qual os povos indígenas são parte, aponta a carta, a Constituição não concede, mas reconhece o direito originário dos nossos povos, colocando fim a séculos de gravíssimas violações de direitos, incluindo mortes em massa e remoções territoriais forçadas, inclusive durante o regime militar de 1964 a 1985. Por sinal, esse direito territorial é reconhecido oficialmente desde o Alvará Régio de 1º de abril de 1680, ainda durante o Período Imperial, e reiterado em todas as Constituições brasileiras, desde 1934”, explica a Carta da Apib.
“A afirmação de que os nossos povos podem constituir ‘novos países no futuro’ demonstra franco desconhecimento da legislação correlata”, prosseguem as lideranças, “uma vez que a própria Constituição estabelece no Artigo 20 que as terras indígenas são Terra da União”.
Soberania nacional
E, “por se tratar de direito fundamental previsto pela Constituição Federal e sendo as terras indígenas bens da União, dar cumprimento à sua demarcação e proteção jamais poderia ser considerado nocivo ou ameaçador ao Brasil”, enfatizam. “Pelo contrário, o que atenta contra a soberania nacional, a democracia e os interesses do povo brasileiro é justamente descumprir direitos e deveres fundamentais explícitos na Carta da República e impor um modelo de desenvolvimento de impactos irreversíveis sobre os nossos povos e territórios tradicionais, os mais preservados ambientalmente do País”, informam.
“Não admitimos ser tratados como seres inferiores, como tem ressoado em declarações de Vossa Excelência. Somos apenas diferentes, sendo obrigação do governo federal segundo a Constituição, respeitar nossa “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (artigo 231 da Constituição). Repudiamos, portanto, o seu pejorativo e reduzido entendimento de nos considerar animais em zoológicos. O modelo de desenvolvimento que defendemos e implementamos em nossas terras também é diferente do que Vossa Excelência apregoa, pois buscamos fortalecer a sustentabilidade e a gestão ambiental de nossos territórios. Rechaçamos qualquer tipo de exploração predatória dos bens naturais e reivindicamos que nossos saberes e conceitos de bem viver fossem respeitados”, asseveram.
Além da manutenção da Funai no Ministério da Justiça, e com “dotação orçamentária necessária para o cumprimento de sua missão institucional”, a Carta lista outras dez propostas e reivindicações, relacionadas à demarcação de terras e à proteção dos povos residentes em terras já demarcadas, além de garantia da continuidade do atendimento básico à saúde por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai); efetivação da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade; fim da violência, da criminalização e discriminação contra os nossos povos e lideranças; aplicabilidade dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, de modo especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); e cumprimento das recomendações da Relatoria Especial da ONU para os povos Indígenas e das recomendações da ONU enviadas ao Brasil por ocasião da Revisão Periódica Universal (RPU), todas voltadas a evitar retrocessos e a garantir a defesa e promoção dos direitos dos povos indígenas do Brasil.