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Insistência de ruralistas em PL inconstitucional prolonga luta indígena

Provável derrubada do veto de Lula deve retornar caso ao STF. Territórios seguem mobilizados

Antonio Cruz/ABr

A insistência da banda ruralista em um projeto de lei declaradamente inconstitucional prolonga a luta indígena pela proteção de seus territórios tradicionais. Mesmo após a conclusão vitoriosa do julgamento da tese do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de setembro, e o veto parcial do presidente Lula (PT) ao PL 2903/2023 na última sexta-feira (20), deputados e senadores comprometidos com o avanço do agronegócio sobre terras indígenas – homologadas ou não – vêm elaborando estratégias diversas para contrariar a Constituição Federal e aprovar o texto original, causando instabilidade jurídica e, possivelmente, mais confrontos contra os povos originários, comprovadamente, os que melhor protegem as florestas, a biodiversidade e o clima no mundo.

A avaliação é do coordenador-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Tupinikim, liderança na aldeia Caieiras Velha, em Aracruz, norte do Estado, que alerta sobre os riscos inclusive para as Terras Indígenas (TIs) capixabas, historicamente usurpadas pelo agronegócio de eucalipto da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose) e por outros empreendimentos de grande impacto, principalmente petroportuários.

“Há muitos riscos para os territórios indígenas. A gente acredita que o Congresso vai, sim, derrubar os vetos do presidente Lula e vamos ficar dependendo do impedimento, de novo, pelo STF, reconhecendo a inconstitucionalidade do PL. Porque se transformado em lei, o Marco Temporal vai ser questionado pelas instituições, que vão entrar com uma Adin [Ação Direta de Inconstitucionalidade] para derrubar de uma vez por todas o PL. Mas até a Adin ter o julgamento concluído, a gente retorna àquela situação da revisão dos territórios já demarcados, como é o caso das TI Tupinikim e Guarani no Espírito Santo. A maior parte do nosso território foi demarcada após a Constituição de 1988”, explica.

Ao apreciar o PL 2903/023 aprovado pelo Congresso, o presidente Lula vetou 34 artigos, gerando o texto da Lei 14.701, que trata do reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas. Os únicos trechos que não foram alvos do veto são os que tratam das disposições gerais, com a definição dos princípios orientadores da lei, as modalidades de terras indígenas para reconhecimento da demarcação e os pontos que norteiam o acesso e a transparência do processo administrativo.

Informações do Senado apontam que o Congresso Nacional pode reverter a decisão final sobre a lei, rejeitando os vetos presidenciais. Para isso, é necessária a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores, computados separadamente em sessão do Congresso. Quando analisada pelo Senado, a matéria obteve 43 votos a favor e 21 contrários. Já na Câmara, foram 283 votos favoráveis e 155 votos contrários.

Nesta quinta-feira (26), o Congresso irá votar alguns vetos presidenciais, mas até o momento, os relativos ao PL 2903/23 não estão na pauta, conforme afirmou o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), sem descartar a possibilidade de uma mudança no cenário, atendendo à pressão da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que aventa obstruir a pauta enquanto os vetos não forem votados e protocolar um PL que altere o funcionamento do Judiciário. Há também a possibilidade de projetos voltados a favorecer, com indenizações, fazendeiros que forem retirados de terras indígenas, possibilidade aberta pelo próprio STF no julgamento do Marco Temporal.

‘Não existe boa-fé’

“A situação é complicada, porque com a indenização, o governo vai legitimar o desastre que o latifundiário, o invasor, fez nas terras indígenas. O que a gente sempre brigou e briga é que as ocupações feitas em terras indígenas são de má-fé. Não existe boa-fé nisso”, afirma Paulo Tupinikim. Exemplo, conta, ocorre no Espírito Santo.

“Quando estávamos lutando pela terra, já existia um processo, a área estava sub judice desde 1978 e a Aracruz [Celulose, atual Suzano] continuou plantando eucalipto. Em 2010, quando houve a última homologação do território, o governo reconheceu que a ocupação da Aracruz foi de boa-fé, tendo em vista que a empresa retirou todo o eucalipto, ao invés de ter deixado para que a gente pudesse comercializar e ter uma espécie de indenização pelos danos ao território. O governo chegou a assumir a responsabilidade [pelos danos] naquela época, disse que faria uma indenização das comunidades, mas não pagou nada”, relata.

O coordenador da Apoinme menciona ainda outro aspecto do PL que incide diretamente sobre as TIs capixabas, que é a possibilidade de retornar ao governo federal, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), as terras que forem consideradas descaracterizadas. “O PL fala que as terras que perderam as características tradicionais, que é o nosso caso, seriam devolvidas ao Incra. Sendo que é uma descaracterização que foi feita pelas empresas, antes da homologação”.

São tumultos jurídicos que prolongam uma situação de insegurança nos territórios, em que os povos indígenas são chamados a continuar em luta. “Não vamos aceitar, então vai haver confronto!”, avalia, acrescentando os impactos para toda a humanidade. “Com a derrubada dos vetos, não é só a população indígena que perde, é a população mundial, porque dá abertura para os grandes empreendimentos entrarem nos territórios. E os territórios indígenas são os que mais preservam o meio ambiente. Uma vez esses empreendimentos adentrando nos territórios, é toda a biodiversidade que pode ser destruída”.

‘Lula flexibiliza a passagem da boiada’

Em suas redes sociais, a Apoinme e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) noticiaram os vetos presidenciais com a manchete “Lula flexibiliza a passagem da boiada” e convoca os povos indígenas a continuarem avançando na luta. As entidades ressaltaram que a reivindicação inicial era pelo veto total ao PL 2903/23, mas que agora é preciso lidar não só com a possibilidade de derrubada dos vetos pelo Congresso, mas também com os trechos do projeto de lei que foram mantidos pelo presidente, especialmente os artigos 20 e 26.

O 26, explica a Apib, trata da cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades econômicas, o que pode ampliar o assédio nos territórios para flexibilizar o usufruto exclusivo. Já o artigo 20 afirma que o usufruto exclusivo não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional.

“Afirmamos que o Artigo 20 é perigoso, pois pode, igualmente, abrir margem para mitigar o usufruto exclusivo, diante do conceito genérico de ‘interesse de política de defesa’, justificando intervenções militares nos territórios. E, mesmo com essa ameaça, reforçamos que os Povos indígenas são resguardados pelo Artigo 231, §6o, da Constituição, que prevê̂ que o relevante interesse da União deverá ser disposto por Lei Complementar e não por Lei Ordinária como é o caso do PL 2903”.

Os artigos vetados

Para vetar os 34 artigos do PL 2903/2023, o presidente Lula se embasou na decisão do STF sobre a inconstitucionalidade do Marco Temporal e nas consultas feitas aos Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Justiça e Segurança Pública e dos Povos Indígenas, e a Advocacia-Geral da União (AGU).

Além de rejeitar a definição do período para a demarcação de novos territórios indígenas, o presidente vetou a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas. Ele também rejeitou trecho que garante que “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”.

No mesmo sentido, o presidente rejeitou trecho que ampliava as possibilidades de indenização às ocupações de boa-fé. Para a Presidência, “ao alargar as hipóteses de casos indenizáveis, o dispositivo pode gerar incentivo à ocupação e à realização de benfeitorias após a expedição da portaria declaratória, ampliando eventuais custos com pagamento de indenizações a cargo da União”, explica.

Lula decidiu vetar ainda trecho que impedia a ampliação de terras indígenas já demarcadas, previa a adequação de processos administrativos de demarcação não concluídos nas regras da nova lei e possibilitava a retomada de áreas reservadas aos indígenas quando verificada a “alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. A equipe técnica da Presidência alega que o dispositivo descumpre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, bem como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).

Outro trecho vetado por Lula é o que permitia a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente, como a Fundação Nacional do Índio (Funai). Também dispensariam essa consulta obras para expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico.

Nessa mesma frente, o presidente vetou dispositivo que permitia ao poder público a instalação de equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação.

“A proposição legislativa contraria o interesse público devido à ampliação de hipóteses e atores institucionais com autorização para instalação e construção de um rol abrangente de equipamentos, vias e bens com potencial impacto sobre a proteção das terras e direitos assegurados aos povos indígenas. Além disso, o dispositivo afronta o teor da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais ao não prever consulta prévia aos povos e comunidades potencialmente afetados pelas intervenções previstas”, diz a justificativa do veto.

Estudos técnicos

Lula ainda rejeitou mudanças propostas pelo projeto para criar novas exigências no bojo dos estudos técnicos que subsidiam o procedimento para demarcação de terras indígenas. Entre elas, está o dispositivo que determinava que as informações orais reproduzidas ou mencionadas no procedimento demarcatório somente teriam efeitos probatórios quando fornecidas em audiências públicas, ou registradas eletronicamente em áudio e vídeo, com a devida transcrição.

Entes federados

Também foi vetado o artigo que previa nova etapa para o procedimento administrativo de demarcação. O trecho obrigaria a participação dos estados e dos municípios em que se localiza a área pretendida e permitiria a manifestação de todas as comunidades diretamente interessadas e entidades da sociedade civil desde o início do processo administrativo demarcatório. No entanto, o presidente argumenta que o dispositivo acabaria “criando, para os entes federados, obrigação de participação no procedimento sem, contudo, indicar os termos e as etapas processuais nos quais a participação deveria se dar”.

Povos isolados

Ainda na lista de vetos está o trecho que permitiria, no caso de indígenas isolados, a interferência do Estado para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.

A Presidência justifica o veto explicando que o dispositivo contraria o interesse público ao ampliar as exceções à política de não contato com povos indígenas isolados a partir da adoção de expressão imprecisa “para intermediar ação estatal de utilidade pública”, desconsiderando os riscos associados à vulnerabilidade socioepidemiológica que caracteriza os povos indígenas em situação de isolamento voluntário.

“Além disso, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, uma vez que o Estado brasileiro, desde a construção da Constituição federal de 1988, estabeleceu destacada política de não contato com povos indígenas que vivem em isolamento. Este dispositivo converte a política de não contato em uma política de contatos forçados com os indígenas isolados ‘para intermediar ação estatal de utilidade pública’, hipótese inédita e demasiadamente ampla que pode gerar ameaças aos povos indígenas em isolamento, em afronta, portanto, ao inciso III do caput do art. 1º, do caput do art. 5º e do caput do art. 231 da Constituição”.

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